quinta-feira, 19 de junho de 2014

É aniversário do Chico e eu queria agradecer

Era assim:
Eu era criança e eu sabia de umas coisas.
Que a gente morava fora do Brasil e não era por querer.
Que a gente não podia voltar.
Que no Brasil tinha um moço que fazia umas músicas tão bonitas, que a gente cantava junto e dava esperança e alegria.

Os discos do moço, as fitas com as músicas do moço, chegavam assim meio escondidas, como se fossem muamba, cheias de mistério e encanto.


Aí eu fazia a minha parte.
Chegava uma fita, um disco do moço, e lá ia eu ouvir incontáveis vezes, até decorar todas as músicas. Ou quase todas. Ouvindo, parando, escrevendo a letra no papel quando não tinha. Aprendendo, me impregnando.
Nas férias, nas viagens de carro, eu ensinava. Ensinava à família: cantava para meu pai, para minha mãe, para meus irmãos aprenderem. Para que a gente incorporasse mais aquelas ao repertório e pudesse cantar juntos.
Mais um dia. Mais uma viagem. Mais uma esperança. Mais uma lembrança, nesse ano de datas redondas.

Em que Chico faz 70. Em que fazem 10 que meu pai não está mais aqui.
E eu agradeço. O tempo. A vida. A convivência. As canções.


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sexta-feira, 30 de maio de 2014

Festa Junina da Telinha

Esse post é da Stella Cavalcanti, que deu de presente pro povo, e eu que não sou besta nem nada já deixo ele pregado aqui pra não se perder.
Afinal, já é quase junho.

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amo festas juninas. mais que meu aniversário, natal, ano bom. amo cada comida, cada cheiro, cada bandeirinha. amo as crianças colando bandeiras de papel de seda com cola de farinha de trigo no cordão. amo as mulheres na mesa da cozinha preparando comida, tirando a palha do milho, amarrando as pamonhas. amo os homens saindo para comprar a madeira da fogueira. amo o cheiro de pólvora dos fogos, a fumaça da fogueira, as simpatias feitas à meia noite. amo o medo de ir ao quintal enfiar a faca na bananeira. amo pintar as meninas com sardas e os meninos com bigode. amo soltar balão, amo dançar quadrilha, amo dançar forró. amo assar o milho na fogueira, amo pular as brasas de mãos dadas com quem será meu compadre ou comadre. amo luiz gonzaga. amo esperar os santos, amo o frio, amo ficar junto da fogueira para espantar o frio. amo andar na rua e ver os amigos e sentar ao lado dos vizinhos e falar das festas e parar de falar, alumbrada, ao ver um balão no céu.

amo santantònio, sanjão e são pedro. amo minha infância e adolescência que me deu junho para lembrar a vida inteira
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terça-feira, 13 de maio de 2014

O Canto do Bosque: aprendendo o fazer coletivo




Há um tempo que ando querendo escrever sobre isso: minha primeira estadia numa colônia de férias. 
O contexto: a gente tinha acabado de chegar na Europa, em Genebra. Chegamos em abril, perto do final do ano escolar. Meus pais, sensatamente, deixaram pra botar a gente na escola no começo do outro ano. Ou, sei lá, não conseguiram botar logo: o fato é que a gente só entrou na escola em setembro, no começo do novo ano escolar (que lá vai de setembro a junho, sendo julho e agosto as férias de verão.). 

Naquele verão, pois, a gente tinha começado a aprender a falar francês com uma professora particular. Já meus primos, Gui e Clarissa, que moravam em Paris, falavam perfeitamente (Clarissa nasceu lá e Gui foi pequenininho). No verão, nossos pais acharam que seria bom a gente ir pra uma colônia de férias. Enquanto os adultos faziam coisas de adultos. Inclusive pra estar mais perto dos primos e pra melhorar a língua antes do ano escolar.

Fomos pro "Coin du Bois", uma colônia de férias na montanha. Le Chambon-sur-Lignon, o lugar. 

Le Coin du Bois
Era uma colônia de férias absolutamente familiar (descobri que era, antes, uma "pensão externa" para alunos de uma escola próxima, o Collège Cévenol, o que talvez explique um pouco sua forma de funcionar). Os donos, o sr. e a sra. Monnier, junto com suas filhas, mantinham o lugar, que era um chalé grande, e as atividades eram caminhadas na montanha, banho de rio, pique-nique... lembro que tinha uma tirolesa onde a gente se pendurava, descendo de uma árvore. E que à noite a gente via programas do Cousteau e jogava cartas. E "mille bornes", um jogo de cartas em que se tinha que fazer um percurso...
Foi uma delícia a estadia. O contato com a natureza, as brincadeiras, o "aprender a viver ali" sem precisar da pressão da escola. A instituição do "goûter", o lanche da tarde, composto de uma fatia grossa de pão de campanha com manteiga e geléia. O jeito de ser também, as regras, os castigos. Limites diferentes daqueles que a brasileirinha de oito anos que eu era conhecia. Mais severidade. Mais rigidez. Aprendizados. Antes de dormir, às vezes, tinha leitura de histórias: me lembro de um livro de contos africanos, cujas histórias me assustavam um pouco. E falavam de baobás.



Mas o que eu queria contar mesmo tem a ver com o funcionamento do lugar. Como eu disse antes, a colônia de férias era mantida por um grupo de pessoas bem pequeno: a família Monnier, mais um ou dois ajudantes, talvez. Umas seis pessoas ao todo. E como funcionava? Bem, havia (surpresa para os pequenos brasileiros) divisão de tarefas. Todo mundo arrumava cama. Todo mundo lavava louça. Todo mundo. Pequenos e grandes. Eu tinha oito anos, e tinha gente menor que eu. Era dividido em grupos, em turnos: a cada vez um grupo para a tarefa. 

Eu era pequena demais pra saber que aquilo não era um padrão necessário. Mas lembro da sensação de encantamento. De me sentir capaz. Participando, fazendo acontecer. Fazendo a minha parte. Me lembro da pilha de louça na pia, dos métodos que criei ali pra passar detergente, pra lavar. De como aquelas atividades eram alegres e animadas, com conversas e risadas. De como aquilo me transformou. 

Lembrei disso tudo hoje por conta de um texto bem interessante que fala sobre a educação de crianças e a forma de lidar com elas. Também por conta de uma conversa sobre filhos, e sobre deixá-los experimentar, que tive com Carol nesse domingo de Dia das Mães. Por conta do meu lado sempre meio forasteiro, que vem dessas vivências aí, e me fazem olhar certas superproteções com menos tolerância, talvez, do que se eu tivesse sido criada aqui. 

Ao fazer no lugar da criança, ao não deixá-la experimentar e errar, a gente muitas vezes esquece que está também deixando de permitir que ela aprenda. Que aprender é sempre risco, inerentemente. Que quem nunca testou não vai saber fazer. Não vai saber mexer. Não vai saber. É claro que não é tudo, não é de qualquer jeito: mas existe um necessário desapego aí que, me parece, às vezes falta. Na ânsia de proteger, de cuidar, de deixar confortável, há um excesso de foco sobre as crianças, um excesso de controle sobre suas atividades, que as impede de "fazer do seu jeito". E aqui, é claro, estou falando exclusivamente das crianças de classe média: porque as crianças das classes populares vivem uma realidade muito diversa. Onde, é certo, há muitas adversidades. Mas não deixo de ver ali também oportunidades.

Poderia falar mais disso, e tanto; mas talvez seja melhor acabar o texto assim, meio aberto. Como a cabeça. Espaços necessários. Frestas. 

quarta-feira, 9 de abril de 2014

IPEA, pesquisas, interpretações, prioridades




Tentei de todas as formas evitar falar disso, mas não deu. Vão aqui então meus dois tostões sobre o IPEA e a pesquisa sobre violência contra as mulheres.

Só para contextualizar, não sou produtora de pesquisa, ao contrário de tantos economistas. Sou, no máximo, uma usuária, uma leitora informada. Como qualquer outro brasileiro informado. Nada especial aí. Como usuária, o IPEA faz parte da minha vida desde sempre. Desde que entrei na faculdade, há várias décadas.

Mas vi esse dado de 63% dos homens que acham que a mulher deve ser atacada se usar tal ou qual roupa, o dado começou a bombar, as redes repercutiram e me pareceu curioso. Não pelo dado em si, a gente sabe que vive num país machista pra cacete, e 63% é um número tão bom (ou tão ruim, no caso) quanto qualquer outro - mas por ele ter aparecido numa pesquisa cuja base era um questionário. E por isso fui olhar a metodologia, pra entender como é que eles tinham chegado àquele resultado.

Comecei a olhar e tudo parecia muito estranho. As perguntas, vagas e ambíguas, davam margem a várias interpretações; A grade de intensidade -  estou até agora esperando (sentada) pra que alguém me explique a diferença entre “concorda parcialmente” e “discorda parcialmente”. Parcialmente quanto? quem concorda parcialmente concorda mais do que quem discorda parcialmente? O copo está meio cheio ou meio vazio?

[Sobre isso, deixo com vocês a ressalva de Andréa Moraes, a quem agradeço pelas conversas sobre este texto. Segundo ela,

"o “parcialmente” cabe. Ele serve pra isolar os extremos de concordância e discordância e evitar as não-respostas. É um artifício que pressupõe que a variação entre concordância e discordância é o que merece atenção. Pesquisa de escala de valores não é pesquisa de opinião pública, simplesmente."

Ouço com atenção, mas mantenho minha observação e por enquanto minha opinião a respeito. Não se trata do "parcialmente": trata-se de "discordar parcialmente" ou "concordar parcialmente"(aqui, sobre essa escala). Não consigo imaginar como eu própria responderia a isso. Em que casos escolheria um ou outro. Nem como é que dá para interpretar.]

Daí comecei a questionar a pesquisa nas redes. Mas achava, ainda, que havia algo que eu não estava entendendo: estava à procura de alguma explicação, mais do que fazendo uma crítica fechada. Queria que alguém me dissesse que havia algo que eu não estava percebendo, que tinha um “pulo do gato”.
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Afinal, era o IPEA. Um instituto que eu aprendi a respeitar ao longo de toda minha vida profissional, o que inclui muitos anos e vários presidentes da instituição. Já fui até assistente de pesquisa lá, por um breve período. Nesses anos todos, eu podia questionar o foco, a abordagem, as premissas de tal ou qual pesquisa; podia contestar a relevância dos resultados, achar - como aconteceu várias vezes - que se estava fazendo muito barulho por nada, que o caminho deveria ser outro. Nunca na vida, porém,  me lembro de haver visto nada parecido com o primarismo dos erros dessa pesquisa aí.

Alguns dias depois, saiu um artigo com comentários de especialistas criticando a pesquisa. E foi aí que eu me dei conta da gravidade da questão.  Um dos especialistas falava especificamente dos problemas referentes à amostra (e eu não tinha visto isso). Cito aqui o trecho do texto referente a isso:

Para o economista Adolfo Sachsida, que já trabalhou na realização desse tipo de estudo para o Ipea, o primeiro e mais grave dos problemas é a amostra da pesquisa. O instituto ouviu 3810 pessoas em todo o Brasil, 66,5% dessas, mulheres, 15 pontos percentuais a mais do que a proporção de mulheres na população geral, de acordo com o último censo, realizado em 2010 pelo IBGE.
— Essa amostra não pode ser usada para fazer inferências para a população brasileira porque ela não tem as características da população brasileira. Isso aconteceu com a pesquisa porque foram entrevistadas pessoas que estavam em suas casas em horário comercial.
 Fiquei realmente admirada. Como é que uma pesquisa que pretende falar de Brasil não toma o cuidado básico de montar uma amostra representativa? Muita irresponsabilidade. Erro primário, gritante. Não é preciso ser estatístico para entender isso. É, como diz Sachsida, o primeiro e o mais grave dos problemas.
Se a amostra não for representativa (e está evidente que não é: basta olhar a proporção de mulheres e homens, diversa da do Brasil), joga fora no lixo. Não serve pra nada. Não dá para usar. A pesquisa começou errado: nada se pode inferir de uma amostra cujas características não espelhem aquelas da população que se pretende estudar. Desmancha e faz de novo. O máximo que se pode dizer é que “as pessoas que responderam à pesquisa acham que”... o que é bem diferente de dizer “os brasileiros acham que”... , não é mesmo. Bem diferente e totalmente irrelevante. Afinal, sei lá eu quem são essas pessoas. O que elas representam.
Como é que o IPEA tinha chegado a isso, meu deus do céu?

Aí esperei, com ansiedade e apreensão,  alguma resposta do IPEA. Que demorou.

E, quando vieram, as respostas foram, todas, pífias. A primeira, de que o responsável estava hospitalizado, me fez rir e me convenceu de que algum problema sério havia. “O responsável” hospitalizado? De uma pesquisa que a presidenta citou? Como assim? Não é o instituto o responsável? Não tem ninguém pra cobrir quando ele não está? (o economista responsável pediu exoneração posteriormente, numa atitude correta diante da extensão dos danos. A meu ver, no entanto, ele foi só um boi de piranha, um bode expiatório. O problema é outro, o buraco é mais embaixo.)

A segunda, onde a instituição “reconhecia o erro”, foi ainda mais bizarra: atribuíam o erro a uma troca de gráficos e de resultados. Ora, esse erro, acredito, não tinha sido apontado por ninguém, já que não poderia ser percebido por quem era observador externo. E, mais importante: diz o IPEA que "As conclusões gerais da pesquisa continuam válidas (...)".

Como assim continuam válidas? E o erro amostral que invalida todo e qualquer resultado dessa pesquisa? Com erro de amostra, não há nada que se sustente. Tem que montar a pesquisa de novo. Isso, caso se trate da instituição que eu me acostumei ao longo de três décadas a considerar séria e responsável.  E não há “falta de foco” que explique: fazer uma pesquisa estatística é fazer uma pesquisa estatística. Cuidar da qualidade da amostra, da relevância e da capacidade das perguntas feitas serem entendidas com facilidade e gerarem respostas claras, e por fim da correta tabulação dos dados. 

 Estatística é matéria auxiliar de quase todos os conteúdos ensinados na universidade, e sua leitura e interpretação fazem parte do cotidiano de tantas carreiras. Além da de jornalistas que lidam com pesquisas todos os dias. E dos institutos de pesquisa de opinião, coisa que o IPEA não é.


A entrevista de Marcelo Neri, atual presidente do IPEA, dá a entender que quem critica a pesquisa tem uma pauta oculta e obscura: não é meu caso. Faço parte das pessoas que gostariam de manter o IPEA como uma instituição cuja credibilidade é sólida. E isso diz respeito não somente ao erro, mas à resposta a ele. A única resposta viável, a meu ver, dada a magnitude do problema, é refazer a pesquisa. Com uma amostra representativa da população brasileiras. Com perguntas cuja formulação não deixe margem a várias interpretações. Com uma tabulação de resultados cuidadosa e checada inúmeras vezes. Com apresentação interna, antes de ser jogada na rua e na boca da sociedade.

 As mulheres, que sofrem todo dia com a violência presente em nossas ruas e em nossas casas nesse país machista como poucos, só se beneficiariam com essa atitude. Essa pesquisa não serve, vambora andar. A violência tá aí e é todo dia. A gente pode e deve militar contra ela, mesmo que não saiba hoje a percentagem exata dos homens que acham que as mulheres devem ser atacadas porque estão de roupa curta.

Deixo, por último, porque ilustra tanta coisa, um trecho de um texto meu cuja base é, aliás, outra pesquisa do IPEA - uma pesquisa que vale a pena citar e repercutir, a meu ver.

“É preciso fazer tudo ao contrário”, diz ela. Digo eu. Desde o começo. Ninguém nasce assassino de mulheres. Essa doença é da sociedade. Começa com um leve desprezo. Começa com um sutil segundo lugar. Começa com um acreditar que se tem direitos sobre o corpo de outrem. Começa com um “prenda suas cabras que meu bode está solto”. Começa com a facilidade de dizer, na hora do sexo, “fica de costas que eu não quero ficar olhando pra tua cara”. Começa com um “se não queria, não era pra ter vindo até aqui”. Não era pra ter sorrido. Não era pra ter me dado bola. Não era pra ter ficado de bunda de fora, usado salto alto de “fuck me”. Não era pra ter ido até o quarto. Não era pra ter namorado comigo, ficado comigo, casado comigo. Não era pra ter desonrado a família, sujado o nome que carrega. Não era pra ter bebido. Não era pra ter olhado pra outro, sorrido pra outro, dado bola pra outro. Não era.




quinta-feira, 20 de março de 2014

Prólogo de anos terminados em 4




1964 - eu não tinha nascido, mas meus pais casam "antecipadamente", saem do Brasil, minha mãe não se forma, meu pai fica sem trabalho. Paris, Argélia. Novos começos.

1974 - A gente sai do Brasil. Cinco anos de Suíça. Exílio que me define. Forasteira, para sempre.

1984 - Entro na faculdade. Todo mundo achava que eu ia fazer letras, belas artes, desenho industrial, comunicação. Vou fazer economia, para espanto do mundo. Para entender. Porque eu preciso.

1994 - Nasce meu primeiro filho, Felipe. Tenho diagnóstico de linfoma de Hodgkin. Um ano cheio. Um ano alegre, apesar da quimio. Um ano que me faz sorrir, vejam vocês. Felipe bebê. Bebê de alegria, bebê de cura.

2004 - Meu pai fica doente e morre. Tudo isso em meses. Logo antes ele tava em Moçambique trabalhando. Ou em Angola, não lembro. Tava pensando reforma agrária. Tava vivendo, querendo mudanças. Querendo ajudar. Lá, aqui. Tão vivo, meu pai. Até hoje, embora já faça dez anos. A gente lembra, todo dia, e de repente ele tá aqui.


2014 - Aí ainda não sei. Por isso é prólogo. Mas é ano terminado em 4: promete.



quarta-feira, 5 de março de 2014

A greve dos garis e a nossa zelite




Os garis. No carnaval. Tão educativo isso. Os garis pararam no carnaval. Já tinham ameaçado parar no Ano Novo, outro ponto delicado em que se nota mais do que normalmente o quanto eles são necessários. Mas não, no dia 1° as ruas estavam limpas, as praias estavam penteadas e com a areia tinindo, esperando turistas e locais que não têm que trabalhar no sol a pino do dia 1°.
E parece que os garis, esses que trabalharam duro no dia 1° para que os frequentadores das praias e das calçadas cariocas pudessem se espalhar sem medo, ficaram até o meio da tarde sem o espartano lanche e suco a que têm direito.
Não saiu uma linha nos jornais sobre isso. Viva as redes sociais.
Os garis pararam agora, no carnaval, numa jogada de mestre. O carnaval é, de fato, o momento de maior visibilidade para essa profissão invisível. Lembro do texto do menino da USP que, para fazer pesquisa de campo do seu trabalho sobre invisibilidade, foi trabalhar na limpeza da universidade. Pois bem. Nem seus colegas o reconheciam. Ninguém falava com ele. Não o reconheciam porque não o viam. O gari como árvore: faz parte da paisagem. Em silêncio, trabalhando de cabeça abaixada. Que faça seu serviço, que não atrapalhe quem estuda. Quem faz coisas sérias. Quem "faz por merecer".
"Ah, não estudou!".
Que lindo o país da meritocracia. Mais que isso: que lindo o país que prescinde de garis. Porque, né, claro. Os outros países, aqueles lá do primeiro mundo - assim, beeem primeiro mundo, tipo a Escandinávia ... então, esses países: não têm garis, né? Afinal, lá todo mundo estudou... ah, tem? Como é isso então? Sim, entendi. Os garis são, tipo assim, imprescindíveis. Fundamentais. Essenciais.
Estão na base da nossa sociedade de consumo desenfreado. Da nossa sociedade produtora de lixo.
Os garis. Negros garis. Loiros médicos "ricos e cultos", que se insurgiram contra os negros médicos cubanos. Em Cuba, como em todo lugar, tem garis. Negros, possivelmente. Mas também tem médicos negros em quantidade: aí a diferença.



Trabalho insalubre. Trabalho pesado.
Trabalho que necessitaria de muito mais proteção do que eles têm, por conta da exposição a doenças. Por conta do contato direto com o lixo dos outros. O lixo que eu, que você, que todo mundo produz em quantidade. Feio, fétido. O lixo que a gente não quer ver, do qual a gente não quer saber. Pois é. Quem dá conta dele são os garis.

Mas o moço branco que estudou em boas universidades e paga de liberal (mas, descubro, é um reaça de quatro costados) acha errado pagar mais aos garis. Que afinal não estudaram. Porque, diz o moço, se pagarem mais, outras pessoas vão fazer o concurso e vão desempregar os que realmente precisam desse emprego.
Ah, tá. Porque se o salário de gari fosse, vamos dizer, não os R$1.200 que eles estão pleiteando, mas ... digamos... R$6.000 reais, que já é um salário bem razoável... eu vou correr lá pra fazer concurso pra gari? Ele vai? Meu vizinho?
Ah, não? Pois é, amigo, não é só o salário... o trabalho é punk, é pesado, é desagradável, é sujo, é insalubre. É essencial. Justamente por isso é que quem o faz merece dignidade. Merece ser tratado com respeito. Merece um salário que lhe permita alimentar sua família. Comprar remédios. Ter um mínimo de tranquilidade. Ter, quem sabe - oh, transgressão das transgressões - momentos de lazer.
Imagina. O gari na praia, relaxando. O gari viajando de férias. O gari vivendo a vida que não é só trabalho com lixo. Que ousado. Que revolucionário.
Só que não.
Não é nem revolucionário. Nem ousado. Nem "de esquerda". Isso pode ser a vida de um gari na sociedade capitalista. Numa sociedade capitalista um pouco menos selvagem do que a nossa. Um pouco menos escravocrata. Um pouco menos elitista. Um pouco menos racista.
Pode ser, e certamente é.
Mas aqui não.



P.S. Recomendação de filme: "Segredos e Mentiras".
Recomendação de texto: "Garis: um estudo de psicologia sobre invisibilidade pública"

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Fábula Singela Sobre Um País Imaginário




Era uma vez um país que tinha uns pouquinhos donos.
O país tinha uma puliça que o mantinha na mão dos donos pouquinhos.
Donos de muito, o país era grandão.
Aí um dia os donos acharam que os outros tavam se engraçando muito, querendo quem sabe um pedacinho daquele tantão que era dos pouquinhos.
Prenderam, arrebentaram, botaram no pau-de-arara, mandaram pra fora, baniram, exilaram. Mataram. Desapareceram.




Um tempo depois, à custa de muita luta, deixaram os de fora voltar, soltaram os que tavam presos.
Mas continuou tudo assim: uns donos pouquinhos, e toda aquela gente de fora. Querendo um pouquinho também.

Chegou um pessoal que brigava junto com os de fora: um pessoal que era de fora também. E as gentes se alegraram. Fizeram festa. Choraram.
"Finalmente", pensaram as gentes.
E algumas coisas aconteceram: os salários melhoraram, e quem não conseguia trabalho pode ganhar algo pra comer.
Foi importante isso, sem dúvida.

Só que.

Depois de uns anos, ficou claro que era isso mesmo. Que aquilo que seria um caminho era visto como um fim por esses que chegaram e por quem as gentes se alegraram.
As gentes queriam outras coisas. Queriam poder circular sem ter que doar o fígado nem se imprensar em latas de sardinha (que era o meio de transporte desse país aí). Queriam poder ir ao médico, quando ficavam doentes, sem medo de morrer antes de conseguir ser atendidas.
Queriam poder tocar violão, ir à praia, andar de bicicleta, brincar com as crianças.
Queriam, e foram pra rua pedir.
Aí não prestou.
Aí o governo daqueles que eram deles não gostou nem um pouco: "Como? A gente já fez tanto por vocês? Vocês ainda não estão satisfeitos? Ah, assim não vai dar".
E não deu.

[continua na vida de todo dia]



segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

O Ano da Aliança

Mont Saint-Michel

Tem lugares onde se passa pouco tempo e tanto se aprende. Nem posso dizer que passei pouco tempo na Aliança Francesa: passei foi muito tempo lá. Como aluna. Quatro anos importantes. Era pra serem três, mas acabei o Nancy com dezessete anos, e a Aliança não dava diploma de Nancy (com equivalência a nível superior, bastando um ano de complementação pedagógica pra se obter a licenciatura em Letras) a menores de dezoito.. Fiz mais um ano, sem pagar (gracias, Bernard Plaud)  e feliz.

Mais um ano: novos colegas, novos livros estudados. Eu amava aquilo, por que iria reclamar? A gente tentou, não rolou autorização da França. Então. Mais um ano de Karydakis. De Raquel Ramalhete. E eu iria dizer não? Tava eu lá, com Ionesco, Prévert, Voltaire. Olho brilhando pro novo de novo.

Aí no final do ano teve treinamento para novos professores. Uma semana de intensivo, dada pelos diretores das Alianças do Rio todos. Saí dali com emprego em duas unidades da Aliança: Botafogo (a minha) e Ipanema.

Entrei lá e dava aula de manhã e de noite: à tarde, faculdade.
Tranquei a faculdade, fiquei só dando aula, no segundo semestre. Queria conseguir juntar grana pra fazer a peregrinação necessária a Genebra, à Europa. Revisitar casas, escolas, pessoas, paisagens. Me convencer que era brasileira 100%, que agora eu ficava no Brasil por escolha e não porque tinha sido levada.

A Aliança: um dos melhores lugares do mundo pra entrar no universo do trabalho. Pra começar, não era escritório e isso faz toda a diferença: eu trabalhava mais do que 40 hs/semana, mas não me dava conta. Era tão divertido aquilo tudo. Tanta gente nova, esses alunos todos. Eu, mais nova do que quase todos eles. Mas tinha segurança: não só da língua, como dos anos de aprendizado de pedagogia por osmose, com minha mãe que com isso trabalhava. Métodos, técnicas, jeitos. Trabalho em conjunto, dinâmica de grupo, Piaget e Paulo Freire. A Aliança: meu laboratório pessoal.

E tinha o afeto, aquela galera toda que ficava amiga e que me chamava pra tomar chope, a turma que fez uma "fotonovela" com imagens da Fernanda Torres (então minha sósia, ou assim diziam) pra me dar de presente de aniversário. Uma fotonovela em francês. Chorei.

O jeito de aprender: criando afeto. Fazendo sentido com a vida. Paulo Freire na veia. Se não for isso, é decoreba. É "pra prova". E tá esquecido no outro dia. Língua materna é materna por conta disso, acredito. Por conta do afeto. Das memórias. Dos vínculos criados que constituem nexo e estruturam o mundo e a linguagem de cada um. E podem ser várias as "línguas maternas"; a ligação com estas vai ser sempre diferente da ligação com as outras, estudadas, aprendidas, mas sem a história da infância, sem as descobertas da adolescência a lhes dar cor, cheiro, textura, sabores. Estofos.

Passei um ano e meio dando aula na Aliança. E só. Mas parece que foi uma década, de tanto que aquilo me trouxe. De tanto que me fez pensar. A Raquel ainda me botou pra dar aulas de português para estrangeiros, com o método que ela tinha desenvolvido na pós-graduação: "Tudo Bem". Espelhos. Trocas. Gente com novos olhares alargando meu mundo.

Foi um ano só, e faz tanto tempo. Mas tá aqui, vivinho e quente, como se tivesse sido outro dia ainda. Quase agorinha. Pulsando nas lembranças. Organizando meu olhar sobre o mundo.

Gárgulas de Notre Dame



quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

About Last Night




O sonho foi assim, e foi um sonho bem bom de se ter. Daqueles que a gente acorda ainda meio sorrindo.
A história era que eles estavam conversando em uma casa de alguém e ela deu um beijo nele. Um beijo de impulso, como ela seria bem capaz de dar. Meio na ponta dos pés.
E eles nem conversaram direito depois, porque na casa ampla onde se passava o sonho tinha outras pessoas, entrando, saindo. Teve o beijo e ela saiu.
Aí quando foi pegar o maço de cigarro esquecido ali, naquela sala onde tinha rolado o beijo, achou o bilhetinho dele. Um bilhetinho desses que a gente lê e esquenta a alma. 

Mesmo que agora, contando, ela não lembre mais o que tinha escrito. Era pequenino o bilhete. Estava enfiado no plástico do maço de cigarros. E era um texto daqueles dele, precisos. Desses que tantas vezes fazem-na sorrir. Que nem o sonho.


Divã laminado de letra cursiva



Letra, pra mim, é objeto de divã.
Eu sou canhota.
Eu pulei o que era então chamado de "Pré-primário", que vem a ser a classe de alfabetização. Onde se aprende a ler, e isso eu sabia: e a escrever (a parte mecânica da coisa), e isso eu não.
Daí com 7 anos (eu tava entrando na 3a série), pimba! - polícia, fuga, blablablá... vou morar no século XIXops, não, na Suíça.
A gente bebia água da fonte no meio do pátio (ou da torneira do banheiro).
 O quadro negro era limpo com uma mega esponja que ficava dentro de um balde.
e a gente escrevia com caneta-tinteiro, gentilmente fornecida pelo Estado de Genebra.
Cês podem imaginar o drama? Canhota, com essa escrita pra destros da esquerda pra direita, e caneta-tinteiro?




Daí hoje eu gosto da minha letra. 
(Sempre gostei de ser canhota. Ariano desafio.) 
Escrevo de caneta-tinteiro, quando dá.
Na vertical, que não cansa meu pulso e nem borra.
Na vertical, mesmo quando não é caneta-tinteiro.
Mas foi aí que eu aprendi.