terça-feira, 14 de junho de 2016

Carta ao Jayme

Jayme querido,

acordei hoje pensando em você. Você nem imagina o que está acontecendo em São Paulo: com um frio horroroso, a Guarda Municipal tá tirando os cobertores, colchões e papelões do pessoal de rua. Acredita numa violência dessas? E sabe qual é o argumento que eles estão usando? Privatização do espaço público..... nesse frio, cara, já morreram pelo menos quatro pessoas em São Paulo. Quer dizer, morrer pode, privatizar o espaço público é que não. E isso, na terra dos puxadinhos de calçada, das coberturas não-regularizadas, dos espaços fechados para estacionamento privado, das ruas com cancelas onde só quem se identifica é que pode entrar.... privatização gourmetizada pode, mas pobres enfeiam a cidade, não é mesmo. É muito revoltante.

Lembrei de você, claro, por conta dos sopões. Chegou essa época do ano de novo, e você ia estar lá, distribuindo sopa quente, como todo ano. E eu só sei disso porque você teve que contar algo que ninguém sabia sobre você, e que correspondesse ao espírito aquariano de solidariedade e de fazer coletivo. Aí você contou isso. Seus colegas engravatados provavelmente nunca souberam. Não era algo que você fizesse para se exibir: era convicção mesmo. Virar a noite distribuindo sopa e conversando com o pessoal de rua, que, você tão bem sabia, não é melhor nem pior do que a gente: só tem uma história diferente, junto com o azar de viver em um país em que a cidadania não é plena e o capitalismo é realmente selvagem.

Tenho lembrado muito de você por conta da minha amiga Carla, também; ela está morando na sua rua, e mais de uma vez já comentei que vocês teriam se dado tão bem. Contei do seu apê, que conheci nas duas versões: a primeira, um dois quartos sem nada de extraordinário, e a segunda, depois da obra "de recriação", um quarto e sala com cozinha americana espetacular. Contei também da virada que você deu na vida, quando decidiu que ia largar de vez a economia - em que tinha uma carreira extremamente bem-sucedida - para se dedicar à astrologia em tempo integral. Você tinha chegado lá em cima e não gostava do que via. Avisou a todo mundo e saiu, lindamente. Virou um astrólogo bem-sucedido: sua auto-confiança e sua garra em entrar na nova profissão deram mais do que conta do recado. 

Continuo sentindo falta de passar na sua casa para um café, como contei aqui. O texto é de 2013, mas a saudade permanece. Conversar com você era das coisas boas dessa vizinhança e acho que não vou deixar de sentir falta disso nunca. Daí a carta, que não resolve, mas ajuda um pouco.

Quero crer que, aí de onde você está, as comunicações são boas o suficiente pra que chegue a bom porto. Gostaria de saber das suas aventuras do lado de lá também, mas a comunicação pra cá não é tão eficiente. 

Vamos andando aqui, querido. Com alguma dificuldade. Vendo o que dá. Os tempos estão estranhos. Você não ia acreditar. Mesmo quem tá vivendo por aqui tá com dificuldade... mas vamos andando porque não tem outro jeito.

Um beijo grande, até outro dia.
Saudade sempre.
Obrigada por tudo.


Renata




foto daqui.

12 comentários:

  1. pessoas boas não deviam ir embora cedo.

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    1. não deviam mesmo. acho que você teria gostado do Jayme. beijo.

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  2. Chorei de saudade e de emoção com esse texto tão lindo, Renata!! Jayme era um amigo tão querido e uma pessoa tão especial, faz mesmo falta nesses tempos bicudos!

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    1. Cara, eu passo por ali de vez em quando. Sinto mesmo falta do café e do humor irônico. Fora a força. Beijo beijo. <3

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    1. eita, que coisa mais linda... :) O Jayme era uma pessoa muito amável. Você ia adorar ele tb. (tb por conta do Claudio, que eu já tinha dito. e da Carla, que eu digo sempre).

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  4. Bela carta. Comovente e sua sensibilidade com os irmãos de Rua. Sim, Jayme será sempre lembrado.
    Meu carinho, Martha

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  5. Lindo, Renata, lágrimas nos olhos. Que bom que você nos ajuda a cultivar essa saudade. beijos

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    1. Saudade de vc, flor. Vamos tomar um vinho com a Marthinha quando vc voltar. Beijo!

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  6. é por Renata que agora conheço Jayme. Acho que ela é porque ele foi. ¡Gracias por tus trabajos! @rgrijalba

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    1. No texto, tem um link para um trabalho dele, para você conhecer com a própria voz. Vale a pena.
      Um abraço!

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