quarta-feira, 12 de setembro de 2018

Dona Maria



Eu queria ter os olhos dela. Aqueles olhos claros, verdes com um miolo acastanhado. Os olhos mais lindos.
Ela não era dessas avós que botam no colo, que deixam fazer tudo, que fazem cafuné: esse, o do colo, do cafuné, das histórias na rede, dos sonhos, era meu avô. Ela era do fazer ariano: biscoitos, comida, roupas. Uma forma de mostrar afeto no concreto, com a mão na massa. E severa: eu tinha respeito e um pouco de medo, embora ela jamais levantasse a voz - nem pra mim, nem pra ninguém. No máximo, me cutucava quando eu e meu avô - tão parecidos - nos excedíamos nas discussões. Não ficava bem para uma moça.
Meu avô falando dela: amor e admiração infinitos. Ele sabia que, sem ela, não haveria casa, não haveria filhos criados, não haveria…. Condições materiais. Ela organizava, cuidava, alimentava.
Eu lhe sabia prazeres, sendo o maior de todos o mar. O mar pra olhar, o mar pra tomar banho. Quisesse ver Dona Maria feliz, era ir com ela para a beira-mar.
Teve um tempo em que eles moraram em Jampa, naquela casa que só eu conheci. Uma casa grande, de terrenão, redes na varanda (essas em que eu deitava com meu avô a contar histórias), e porteira direto pra areia. Olha a maravilha. Todo dia, durante aquelas férias, a gente ia tomar banho de mar antes do café da manhã.
E o café da manhã… era aquele, sabem. Aquele café da manhã que só tem no Nordeste, com banana comprida, cuscuz, queijo de coalho, tapioca, cará, macaxeira…. Era uma refeição de responsa o café da manhã da minha avó.
Tanto que o primeiro sintoma da doença insidiosa que ia lhe levar as lembranças foi justamente aquele dia (e era eu quem estava lá, de novo) em que ela disse que não iria fazer o café da manhã. “O pessoal do hotel vai trazer”, ela disse. E eu entendi. Aquela casa, sem meu avô, não era mais a dela: ela não reconhecia, estava faltando aquele que a fazia chamar qualquer casa de casa. “Por onde for, quero ser seu par”. Minha avó, com meu avô. Minha avó e o vazio deixado pelo meu avô.
Dona Maria. Saudades, Dona Maria.
Eu, minha avó, o vento, Meteora




segunda-feira, 27 de agosto de 2018

Fios de Ariadne - III


Vi algo escrito com o prenome "Franco" e de repente o fio foi puxado. Franco. Quando foi mesmo que ouvi esse nome antes? Ou melhor: o que esse nome tem a ver comigo?
Não precisei de muito esforço pra lembrar: Franco era o garçom do Dino.
O Dino era o restaurante italiano da Rue de la Terrassière, perto do nosso primeiro pouso em Genebra.
Era na esquina, a gente ia lá um monte. Um restaurante pequenino, popular, familiar. Dino e Elsa, sua mulher, na cozinha; Franco, o único garçom, cuidando dos pedidos.
Juju em cadeira alta. A radiola de fichas em que ouvia Mireille Mathieu (Acropolis, Adieu) e Dalida (Paroles paroles), antes de entender.
Quando, dez anos depois de ter voltado pra cá, fiz com o namorado uma peregrinação a Genebra, fomos jantar no Dino. A alegria dele. O spaghetti especial, em uma gôndola de alumínio com aqueles palitos de faíscas nas duas pontas.... de presente, claro. Às lágrimas, Dino, Elsa, eu. Como vão o pai, a mãe, os irmãos. "La petite".
Que viagem. Resultado de imagem para rue de la terrassiere geneve

quarta-feira, 25 de julho de 2018

Para Paulo Ricardo do Recife

Paulinho querido,

vim te dar notícias do mundo de cá, enquanto penso em você no mundo de lá. Será que já se adaptou? Será que ainda estranha os jeitos e as modas? Papai passou pra te dar uma força?
Tantas perguntas, e você e seu olhar verde como explorador desse outro mundo.
Quando meu pai morreu, ganhei de presente de uma amiga um livro do Rilke, "As Elegias de Duíno". Me contou ela que tinha sido importante quando da morte do pai dela, que esperava que me ajudasse também. Acho que nunca disse a ela como foi e como é importante ter lido aquele livro. Mudou meu olhar e me ajudou a acolher a dor da ausência, que permanece.
Ainda converso com você na cabeça, de vez em quando. Sobre aqueles assuntos em que a gente discordava, e que voltava e voltava a discutir. A ideia de "moderno", por exemplo, que pra você estava associada a aço e cimento, a construções altas. Você falava comigo como se eu não quisesse que o Recife "se desenvolvesse". Acho que talvez, depois desse último período em que veio mais vezes ao Rio, você tenha entendido que não era isso, muito antes pelo contrário. Que o meu Rio é cheio de prédios antigos, que a orla da praia não permite edificações de 30 andares, que o centro da cidade - meu lugar predileto - é de sobrados e paralelepípedos.
Será que, daí, você vê seu sobrinho mais novo crescendo? Tão parecido com você, ele. A boca, os olhos. Que bom que deu pra ele conviver bastante, pra vocês se aproveitarem um ao outro. A gente fica querendo que fosse mais, é certo. Mas foi muito, o tempo que deu. Foi intenso.
Carol tá parecendo bem e feliz. Sempre uma alegria renovada ela por aqui. Há tanto tempo, mas continuo me alegrando. Ela foi pro Recife e estava lá no aniversário de 89 do velho Paulo: cara, que sujeito impressionante. Tá lá, vivendo a vida, indo ao xópin de que você também tanto gostava - mais uma de nossas diferenças -, se divertindo como só ele sabe. Vi fotos bem bonitas dele e de tia Zélia, das suas irmãs, na comemoração. Uma pena que não dê pra gente estar sempre, mas o coração tá junto e a tecnologia ajuda a se sentir mais perto.
A gente por aqui... cara, tá difícil paca. Não sei o que você ia achar disso tudo. Sei da tua revolta certa com a prisão de Lula: consigo até imaginar você indo dar bom dia ao presidente lá onde Aquele-Que-Não-Deve-Ser-Nomeado o enfiou sem nenhum motivo razoável. E a Dilma deposta... e o Rio de Janeiro, com um prefeito que nem faz de conta que liga pra cidade. Cê não tem ideia.
Como diria Chico,

a gente vai cavando só de birra, só de sarro
E a gente vai fumando que, também, sem um cigarro
Ninguém segura esse rojão


Querido, vou indo nessa. Passei só mesmo pra te dar um alô e um beijo. Pra dizer que você permanece aqui, na lembrança e na saudade. Com os olhos verdes, o sorrisão e a voz grave de tantas cantorias.
Torce aí que a gente anda bem precisada. Quem sabe você não manda umas energias positivas.
Um beijo grandão,
Renata







quinta-feira, 15 de junho de 2017

Hermes no meu coração e "In Her Shoes"



Uma das coisas que mais me encantam no tentar deslindar as artes de Hermes/Mercúrio - e, claro, nunca conseguir - é essa questão do salto entre o que o emissor emite e o que o receptor recebe. Existe uma pirueta aí no meio, um vazio de significado que faz com que a gente só receba aquilo que está preparada para receber. É fácil entender isso se a gente pensar no daltonismo, por exemplo: o daltônico não está "preparado" para receber todo o espectro de cores. O que ele vê está errado? É mentira? Claro que não. É o que ele percebe, a sua decodificação do que há em volta e que a gente chama, por falta de outro termo melhor, de real. A mesma coisa com sons que a gente (o ouvido humano) não é capaz de perceber, e nem por isso são menos concretos para cães ou outros animais.
Comento isso para falar de um filme que vi de novo por estes dias. Vi de novo, vi pela primeira vez: era outra eu que viu o filme antes, sem prestar muita atenção. Desta, chorei tanto que tive que ir lavar o rosto. Chorei de soluçar.
O filme se chama "Em seu lugar" (In Her Shoes) e talvez seja descrito como uma comédia (ou uma "comédia dramática", o que quer que seja isso). Conta a história de duas irmãs (Cameron Diaz e Toni Colette) muito diferentes, que perderam a mãe cedo e não sabem que têm uma avó viva. Uma, toda certinha, advogada, contida; outra, festeira, porra-louca, bagunçada, armadora. Esta segunda acaba descobrindo que a avó existe e vai visitá-la, em um desses condomínios para idosos em lugar de clima ameno que existem nos EUA. Aí ela descobre seu talento para lidar com idosos, e essa parte do filme é uma das delicadezas. Um dos idosos, um professor de literatura cego, pede que ela leia poesia para ele, e descobre que ela tem dificuldades de leitura: aquela prática vira um hábito dos dois, uma troca. Ele recebe as palavras ("poesia é feita para se ler devagar", diz ele, incentivando-a), ela recebe aulas informais e afetivas. 
É um filme sobre ausências, faltas, erros, compensações, recuperações, perdão: esqueci de dizer que quem interpreta a avó é a Shirley MacLaine, tão maravilhosa, tão ruiva, tão ela. Um filme leve, um filme delicado, um filme sem grandes pretensões mas que tocou  tão fundo na Renata daquele dia. Um filme sobre amor de irmãs, um tema que sempre mexe comigo.
E, no final, a irmã séria-mas-nem-tanto se casa, e o presente da outra irmã, na cerimônia, é a leitura de um poema do e.e.cummings (aqui, o poema e uma tradução de que gostei):



quarta-feira, 5 de outubro de 2016

Uma história de rodas e redes

Esta semana, como acontece de vez em quando, estive em uma mesa em que eu era a única pessoa participante efetiva de redes sociais. Uma situação rara, mas ainda existente. Pessoas que não estão nas redes sociais, ou que apenas estão para fazer contato com os próprios amigos "reais" - de fora das redes.

Na verdade, não só nas redes sociais: na internet em geral. Porque, como muita gente sabe, antes das redes sociais eram os blogs. E suas caixas de comentários: lugares onde a gente se encontrava e conversava, onde a gente aprendia a conhecer gente e acabava criando relações.
Depois vieram as redes, e pra elas a gente migrou. Aumentou, claro. Intensificaram-se os contatos, as possibilidades, os encontro. Multiplicaram-se as redes e a gente passou a esbarrar com as pessoas lá e cá, em uma e outra.


Como é frequente acontecer, as pessoas-que-não-frequentam-redes são cheias de opiniões sobre elas. E esse é um raros dos casos em que eu sorrio e deixo passar o assunto. Sorrio, balanço a cabeça, deixo passar. Quem me conhece sabe que isso é um "quase nunca". 

Mas nesse caso, não acho que valha a pena. Não pretendo convencer ninguém a entrar: quem quiser que entre. Além disso, não basta entrar, acho eu. Porque você pode entrar e fazer desse jeito: não posta nada pessoal, não conta nada sobre si mesmo, não adiciona ninguém que já não conheça. Entrou mas não provou.

Pra provar, é aquele negócio: tem que brincar de iceberg gelatinoso. Rebolar. Deixar-se ver. Mostrar um lado, outro lado. Uma curva diferente. Um brilho inesperado. Um toque ácido, um sabor suave. Daí as miudezas que dizem desnecessárias. O que você come, quem viu quando foi correr, o pôr-do-sol generosamente compartilhado com os amigos, a história dos gatinhos bebês, o sonho da noite passada.
Desnecessárias?
Mas não é assim que a gente se conhece?

Só que é essa a beleza das redes: a gente não precisa saber de antemão que tenha alguém escutando. É lago, é praça: a gente lança a garrafa com a mensagem. Chegou em alguém? Teve resposta, fez contato? Olha só. Olha quem curtiu, quem comentou.... eita, essa eu não esperava. Fulaninho gosta dessa música? Quem diria. E aquela ali, vê o que ela disse sobre a foto da orquídea na frente da minha casa... Hahaha pelos terninhos do dia-a-dia, ninguém imaginaria que tivesse tanto senso de humor. E o amigo de Fulano, aquele diplomata lá da Índia? Você já conhecia? Ah, não, aquele foi uma descoberta de alma gêmea. Que bom que tem as redes, né. Afinal, ele tá na Índia. Onde é que a gente iria se conhecer se não fossem as redes?

Pois é. Isso é algo que se vive, não se relata. O relato disso ia parecer tentativa de convencimento, propaganda do tio Zucka (ó, tio Zucka, olha eu falando bem de tu aqui. Mas nem. Tu nem imaginava que ia virar isso, confessa). Então não faço. Ainda mais que a gente sabe: capitalismo mau, a gente posta conteúdo e eles ganham dinheiro, eles tão sugando a gente, tão invadindo privacidades, o interesse deles é só tirar o que podem e o que não podem da gente.
E eu lá vou discutir verdades tão óbvias? Tô falando é do resto. E o resto.... aí tem que viver por conta própria. Eu é que não vou conseguir contar.
Sorrio, balanço a cabeça, deixo passar.




segunda-feira, 12 de setembro de 2016

A sensação de segurança e a cafeteira elétrica


É algo muito interno. Pra fora, eu pareço uma pessoa que não dá a mínima pra segurança: eu vou, eu faço, eu largo sem olhar pra trás. E tem isso também, claro. Vou mesmo, faço mesmo, largo mesmo.
Mas.
A questão é que, em tantas coisas, a segurança me é fundamental. 
Essa aí é uma delas.
Teve a oficina de escrita criativa da Fal, e eu tava meio que na produção: arrumação do espaço,  água, lanchinho, controle do tempo. 
Aí o lanchinho, fundamental para a pausa da oficina de quatro horas. A Carla fez aqueles brownies incríveis, eu comprei umas duas tortas salgadas, sucos, café. 
Pois.
Na casa da minha mãe, onde aconteceria a oficina, tem cafeteira italiana. Eu sei usar a dita cafeteira, claro. Mas não é "a minha". Não é a que eu uso no dia-a-dia. E antevi: ficaria tensa até a hora de preparar o café. E se eu não fechasse a cafeteira direito? E se não passasse? E se transbordasse, e se ficasse ruim?
A solução também é típica: levaria a minha, ora. A cafeteira elétrica que uso todo dia há .... o que, 16 anos? Por aí. A que eu conheço, a que me é familiar, a que me deixa segura.
Fiz um bilhete para o companheiro de café em casa, no sábado de manhã, e colei na garrafa térmica:


Dearest

Perdão, mas achei que ia estressar tendo q fazer café na italiana. 

Esse é de 11:23. 
Espero que esteja bom. 
Beijo, R.

Deu tudo certo, a oficina foi uma delícia e o café até foi bastante elogiado. Só que nem era esse o ponto: poderia ter ficado apenas ok. Meu propósito nem era que o café ficasse bom. Era apenas não ficar tensa porque talvez. Sabendo que a minha cafeteira estava lá, pude aproveitar a primeira parte da oficina, tranquila.
E assim é a vida minha: um monte de gambiarras para fazer com que os "talvez" sejam minimizados.
A bolsa, por exemplo: tem coisa mais linda do que mulher de bolsa pequena? Admiro, aprecio, invejo. Não tem chance de me acontecer. Porque afinal, talvez chova, talvez esfrie, talvez eu entre no ar condicionado, talvez eu precise retocar a maquiagem, talvez. Tanto talvez, e minha bolsa tendo que dar conta de todos eles.
Não dá pra ser pequena, vocês hão de concordar.



quarta-feira, 24 de agosto de 2016

Uma carta para vovô Marcos



*Por Maria Lins
   Sempre fui uma pessoa que gosta muito de ficar pensando nas coisas. em todas elas, de reparar nos detalhes, nas pequenas coisas, por aí vai... E eu sempre acabo me perguntando o porque das coisas acontecerem. Por que tudo que é bom dura pouco? E muitos outros porquês que ficam entalados aqui dentro de mim. Dessa vez não foi diferente, tinha acabado de ler um texto incrível que minha tia Tata fez sobre você, desabei.
  Constantemente vejo pessoas falando de você, todas com gosto, com carinho e com saudade. E me pergunto: por que eu não tive a oportunidade de te conhecer melhor? De saber das suas manias? De te contar as novidades? Tantas perguntas que eu gostaria de te fazer, tantas histórias que eu queria ter ouvido de você, tantos abraços que eu queria ter te dado. Você deve ter sido mesmo um sujeito muito especial, tenho certeza que a gente se daria muito bem, apesar de nossos signos não combinarem taaaanto assim... Ah, isso é uma coisa que eu gostaria que você soubesse; eu acredito em signos e tenho um interesse enorme por esse assunto. Minha mãe às vezes fala como era seu jeitinho virginiano na mesa de jantar, acho engraçado. (Ela pegou algumas das suas manias, principalmente aquela que não pode passar pimenta direto pra pessoa, tem que primeiro colocar na mesa, e assim, a pessoa pode pegar para usar também.) Já meu pai fala que você foi o pai que ele nunca teve. Conta de como vocês se davam bem e de como você era culto e adorava bater um papo com uma comidinha e uma bebidinha gostosa pra acompanhar. 😊
Maria e Vovô Marcos
  Como é possível sentir tanta falta de alguém que você quase não conheceu? Não entendo. Talvez não tenha explicação pra isso, Nem pra você ter ido tão cedo, com 64. Os médicos nunca souberam dizer o por quê. A real é que ninguém sabe o por quê. A vida tem dessas. E aí fica aqui dentro de mim esse sentimento de como seria se você estivesse aqui, o que você ia achar de mim, do meu jeito, das coisas que eu gosto... É, eu sei, é uma incógnita.
 Mas assim eu vou levando a vida, juntando as fotografias que eu vejo suas, alguns textos sobre você, as histórias que me contam, com a ideia que eu crio em minha mente do virginiano/amigo/profissional/pai/avô maravilhoso que você foi. Às vezes isso basta, às vezes não. Na maioria das vezes eu lembro e fico feliz. Às vezes eu lembro e dá aquela vontadezinha de chorar, e choro. Pra mim é muito cruel a ideia de que quando uma pessoa se vai ela simplesmente não está mais aqui, então, eu permaneço acreditando que mesmo você não estando aqui fisicamente, vai estar sempre por perto.
E que alívio que dá. ❤

com carinho e com saudade, Maria.