quinta-feira, 30 de junho de 2016

Um dia de Chico

O Caetano é brinde :)
Se tem algo nessa vida pra que eu tenho facilidade, é isso: línguas. Falo. Várias. Falo mesmo português, francês, inglês. Falo italiano alguma coisa, espanhol dá-pra-me-virar. Astrologuês. Economês. E Chico.
Já escrevi vários posts em "chico", como por exemplo esse aqui lá no Biscate Social Club. Como dá pra ver, não tem aspas: não estou citando, estou falando Chico. 

E falo um tanto. No meio das frases normais. Chico já fez tanto parte. E isso contei nesse outro. É meio uma língua mesmo. Como o 


Vai, meu irmão, pega esse avião, você tem razão.... que dá vontade de dizer pra tanta gente agora. O avião dele era um pra cá. O de agora é um pra lá. Mas serve tanto. 

Mas não diga nada que me viu chorando, e pros da pesada diz que eu vou levando.

Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas. É irônico, galera, é irônico. Cês juram que não tão vendo? Quando eles se entopem de vinho costumam buscar carinho de outras falenas, mas no fim da noite aos pedaços, quase sempre voltam pros braços das suas pequenas helenas.

E a Rita, que levou meu sorriso, e no sorriso dela, meu assunto? Sempre tive um pouco de raiva da Rita. Como é isso, Rita? Levou os meus planos meus pobres enganos, os meus vinte anos, o meu coração, e além de tudo, me deixou mudo o violão. Ainda bem que não era de verdade, e que o violão seguiu na vida, tocando e encantando.

Sim, vai e diz, diz assim, que eu chorei, que eu sofri de arrependimento... que o meu desalento já não tem mais fim....

O cara dilacerado, olha que dor mais bonita de se ver.... ainda mais que ele desiste. É tão bonito isso de desistir. Diz que eu estive por pouco, diz a ela que eu estou louco pra perdoar, e que seja lá como for, por amor, por favor, é pra ela voltar.... 

E dá a volta por cima:
No palco, na praça, no circo, num banco de jardim/ correndo no escuro, pichando no muro, você vai saber de mim... 

Vou armado de dentes e coragem, vou morder sua carne selvagem.... Hoje é o dia da graça, hoje é o dia da caça e do caçador. 

Hoje é dia de Chico aqui no Chopinho. Como tantas vezes. Tim-tim.



domingo, 26 de junho de 2016

O bolo de bolo da Angélica

Desde que me entendo por gente, gosto de cozinhar. Gosto de cozinha, dos cheiros, das texturas, do calor do fogão.... de misturar sabores, de inventar novidades, de experimentar ideias. Só que minha praia é comida salgada. Comida "de sal", como dizem. Não sei fazer doce, e como meu paladar sempre foi mais pro salgado, não me faz falta. Eu gosto de comida mesmo.

Me veio de novo à mente a história que minha prima Roberta conta, da gente criança falando da casa da bruxa de Joãozinho e Maria. Ela diz que eu sonhava com uma casa cujas paredes fossem de carne de porco e o telhado de purê de batata. Não tenho nenhuma lembrança disso, mas faz todo sentido....

Dentre os doces, eu gosto dos menos sofisticados: pudim, bolo-de-bolo..... não sou chegada a caldas, recheios e quejandos. Um ou outro, pode ser: em geral sou básica. Aí que a receita de bolo da Angélica chegou, via Central do Textão, e logo se alojou no meu coraçãozinho: parecia tão fácil, não precisava bater claras em neve, "dar o ponto" de nada.... era pra mim.
Tô há dias querendo fazer, mas não tinha os ingredientes. Quando comprava um, via que outro estava faltando. O último foi o fermento - fiz uma encomenda à padaria só pra comprar fermento, e o rapaz não trouxe. Mais atraso. Hoje de manhã finalmente estava com tudo. E tem dia melhor do que domingo de manhã pra fazer bolo?

Aí vem uma reflexão astrológica: quem me conhece sabe que sou extremamente bagunçada. Sou, com uma exceção: a cozinha. Credito isso à minha casa VI preenchida por Virgem. Meticuloso, organizado, preciso: na cozinha, sou virginiana. Já contei aqui sobre lavar louça, uma atividade de que gosto em vários sentidos. Um deles é justamente esse: o da organização. Separo por categoria, limpo antes de começar, arrumo.... organizo no secador os talheres por tipo, numa sequência que beira o obsessivo ("faz mais sentido botar as colheres com os garfos, deixando as facas separadas, ou os talheres de cada tipo todos juntos?") : pois bem, cozinho do mesmo jeito. A diferença é que ,quando cozinho comida salgada, entra também uma parte de criatividade na história. Método mais criatividade. No caso do bolo, não: é seguir regras e organizar. 

Fiz tudo como manda o figurino. A Angélica dá boas dicas como essa de ligar o forno e untar a forma antes de começar. Mas já tinha separado todos os ingredientes na bancada da pia. Assim os ovos tiveram tempo de ficar à temperatura ambiente. Tirei o iogurte do copo-medida e lavei o copo, pra poder usar com as outras coisas. Peguei duas tigelas grandes e o batedor (manual). Pronto. Depois segui o passo-a-passo da receita, misturando os secos de um lado, os molhados do outro, mesclando os dois, deixando o fermento para incorporar no final, sem bater. Botei também uma pitada de sal, seguindo ensinamento da minha avó (sempre uma pitada de sal no doce, uma pitada de açúcar no salgado). Separei parte da massa pra misturar com chocolate (só tinha Nescau, aí foi tu mesmo). 

Aproveitei pra deixar a massa descansar um pouquinho e lavei os (poucos) utensilíos na pia. 
Aí botei no forno e rezei - não, vim conversar com o povo das redes. Não tinha tempo definido e pedi socorro: a resposta foi que eu deveria verificar a partir de uns 25 minutos. Esperei meia hora pra dar conta redonda, quando o cheiro do bolo já se espalhava pela casa. Enfiei o garfo e ele saiu sequinho.... Voilà!

Uma nova era começa, pressinto. Renata Boleira!

(mentira, continuo sendo dos salgados: mas ficou bem bom, fofinho toda vida, e estou absolutamente orgulhosa do feito.)

Gracias, Angélica!

foto meramente ilustrativa: mas o meu ficou assim!



terça-feira, 21 de junho de 2016

A tia Fulana e os talheres de prata

Na minha escola pública em Genebra a gente tinha um fichário de textos, organizados por tema, no estilo "Para Gostar de Ler". Um cardápio-degustação, de certa forma. E fui atrás de muitos livros por conta daquele fichário. 

O que está na minha cabeça hoje tem a ver com o texto de ontem sobre astrologia: e não sei nem de que livro foi tirado, nem o nome da autora. É um texto que nunca me saiu da cabeça, e que depois, bem depois, eu fui conectar com várias características associadas ao signo de Touro, que é meu signo solar. Acho que provavelmente já até escrevi a respeito: só não sei onde. 

É um texto em primeira pessoa, de uma mulher adulta, que se lembra dos seus aniversários de infância e de uma tia sua, que, em vez de brinquedos, lhe dava sempre um talher pesado, de prata. Às vezes uma colher de servir ou outra. A narradora se lembra com pesar de como desprezava esse presente da tia, já mais velha e fora de moda. Preferia os brinquedos e bonecas dados de presente pelas outras tias, mais jovens e mais afeitas aos gostos infantis. Acaba o texto contando que todos aqueles brinquedos de que tanto gostara na infância agora tinham desaparecido: e no entanto, lá estava, reluzente, o faqueiro de prata, que tia Fulana tinha conseguido completar ao longo dos anos.

Esse texto me incomodava e me tocava: não gostava do desprezo velado que continha pelos brinquedos. Eu amava minhas bonecas, minha bicicleta, meus patins, teria odiado ganhar um talher de prata de aniversário... e no entanto não conseguia deixar de ficar tocada pelo esforço da tia Fulana, de ofertar algo durável, algo útil, algo que servisse para a vida da amada e ingrata sobrinha. Durável. Útil. Prático. Palavras tão taurinas. Touro, esse signo sem charme. Sem o brilho fugaz de Gêmeos, sem o encanto de Sagitário, sem a adorável confusão de Peixes. Sem o carisma de Escorpião, sem os maneirismos elegantes de Libra. Touro. Pesado. Denso. Estável. Fincado no chão de terra. Confiável. 

O texto da tia Fulana era pra mim, claro. E eu não o reencontrarei nunca mais, já que não sei o título nem o nome da autora. Mas ele mora em mim para sempre. Ele e os talheres de prata. Têm sua beleza, os talheres de prata. Não para uma criança, mas para a adulta que essa criança se tornou. E, além de tudo, servem para alimentar-se: querem imagem mais taurina? 


imagem daqui

segunda-feira, 20 de junho de 2016

Astrologia: não teve jeito





Já escrevi sobre minha história com astrologia em outros posts aqui mesmo e também neste da Constelar. Não foi nem simples nem fácil essa pessoa filha de uma católica com um suposto ateu materialista assumir que a astrologia chamava. E era bem assim mesmo, um chamado. Ao contrário da economia, em que entrei porque achei que precisava (e acho que precisava, de fato). Ao contrário das línguas, que sempre fizeram tão parte que nem lembro quando não eram. Astrologia era algo "de fora" que me atraía absurdamente. 

Eu não comentava, mas comprava livros. Tentava entender esse jeito de pensar fascinante e diferente de tudo o que eu conhecia. Entendia que devia haver uma lógica, mas era outra. Diferente daquela a que estava acostumada. As explicações que faziam associações pseudo-cartesianas do tipo "os astros influenciam sua vida" não me satisfaziam: não me parecia fazer sentido aquilo. Mas sentido havia de ter. Fui procurando: Jung ajudou um tanto.   Precisei passar por um curso teórico de medicina chinesa para entender um pouco mais da lógica da astrologia. Analógica. "Em cima como embaixo". E, num livro sobre psicologia esotérica (sim, isso existe) encontrei, na parte que falava de astrologia, elementos que me ajudaram a entender essa outra forma de pensar. Um "corte vertical", diz o autor. O que há de comum, verticalmente, entre todas as categorias: céu, mineral, vegetal, animal, corpo, local, estação, cor..... sendo essa lista tão longa quanto se queira. A cada "plano da realidade" corresponderia uma representação de um princípio arquetípico.  Níveis diversos, unidos por um "algo comum". 

Assim, quando se faz um mapa de nascimento, não se está dizendo que aqueles planetas do céu daquele momento "influenciam" a criança que nasceu, como as fadas no berço de Aurora, que viria a ser a Bela Adormecida. Eles apenas seriam a representação do mesmo momento: aquele instante e sua qualidade apareceria no céu como na terra, e na criança que nasce. Espelhos, reflexos. Sentidos. Por isso é que me parece que o estudo da arte da astrologia não termina nunca. É acúmulo permanente: quanto mais sentidos acumulados para cada significante (signos, casas, planetas, aspectos), mais rica será a interpretação de cada mapa. 

Voltando à história começada e interrompida, acabei me rendendo. Assim, como quem não encontra outro jeito. Uma vez me disseram que eu era "muito corajosa" por dizer, nas redes sociais, que sou economista, mas também faço mapas astrológicos. Não acho que seja: é apenas inevitável. Esconder o quê? Nem a economia que eu aprendi nem a astrologia a que me rendi me definem. Não "sou" esses corpos de conhecimento, apenas os visito e tento transmitir o que lá vi e aprendi. 

Contradição? Ué, não mais do que ser católico e economista, não acham? Ou budista e economista, ou muçulmano e economista.... se ser religioso não impede de ser pesquisador, por que a astrologia impediria? É simplesmente porque ninguém pensa nisso, quando se trata de religiões - pelo menos em suas versões não-fundamentalistas, que convivem com a ciência desde sempre. Por que a astrologia haveria de ser diferente? Não, claro que não estou dizendo que a astrologia é uma religião: apenas comento que o fato de acreditar em algo não-reconhecido pela ciência não impede a boa prática desta. Mas, por algum motivo, a astrologia (que em geral quem critica conhece apenas de horóscopo de jornal) é mais malvista. Embora seja bastante praticada. Mas é por debaixo dos panos....  algo que não se diz. Como se a pessoa deixasse de ser uma pessoa séria por conta disso. Não entendo bem, apenas constato. Dei sorte de vir de uma família em que se estimulava o "por que não?". E a curiosidade em geral. Por qualquer assunto. Assim foi que meu pai, o suposto ateu materialista (que no entanto não recusava um jogo de búzios ou uma catedral), passou a me dar livros de astrologia de presente. Minha tia, outros. Assim foi que todo mundo foi se acostumando com essa ideia esquisita de ter na família alguém que era economista, mas que também fazia mapas. A eles todos, agradeço.

terça-feira, 14 de junho de 2016

Carta ao Jayme

Jayme querido,

acordei hoje pensando em você. Você nem imagina o que está acontecendo em São Paulo: com um frio horroroso, a Guarda Municipal tá tirando os cobertores, colchões e papelões do pessoal de rua. Acredita numa violência dessas? E sabe qual é o argumento que eles estão usando? Privatização do espaço público..... nesse frio, cara, já morreram pelo menos quatro pessoas em São Paulo. Quer dizer, morrer pode, privatizar o espaço público é que não. E isso, na terra dos puxadinhos de calçada, das coberturas não-regularizadas, dos espaços fechados para estacionamento privado, das ruas com cancelas onde só quem se identifica é que pode entrar.... privatização gourmetizada pode, mas pobres enfeiam a cidade, não é mesmo. É muito revoltante.

Lembrei de você, claro, por conta dos sopões. Chegou essa época do ano de novo, e você ia estar lá, distribuindo sopa quente, como todo ano. E eu só sei disso porque você teve que contar algo que ninguém sabia sobre você, e que correspondesse ao espírito aquariano de solidariedade e de fazer coletivo. Aí você contou isso. Seus colegas engravatados provavelmente nunca souberam. Não era algo que você fizesse para se exibir: era convicção mesmo. Virar a noite distribuindo sopa e conversando com o pessoal de rua, que, você tão bem sabia, não é melhor nem pior do que a gente: só tem uma história diferente, junto com o azar de viver em um país em que a cidadania não é plena e o capitalismo é realmente selvagem.

Tenho lembrado muito de você por conta da minha amiga Carla, também; ela está morando na sua rua, e mais de uma vez já comentei que vocês teriam se dado tão bem. Contei do seu apê, que conheci nas duas versões: a primeira, um dois quartos sem nada de extraordinário, e a segunda, depois da obra "de recriação", um quarto e sala com cozinha americana espetacular. Contei também da virada que você deu na vida, quando decidiu que ia largar de vez a economia - em que tinha uma carreira extremamente bem-sucedida - para se dedicar à astrologia em tempo integral. Você tinha chegado lá em cima e não gostava do que via. Avisou a todo mundo e saiu, lindamente. Virou um astrólogo bem-sucedido: sua auto-confiança e sua garra em entrar na nova profissão deram mais do que conta do recado. 

Continuo sentindo falta de passar na sua casa para um café, como contei aqui. O texto é de 2013, mas a saudade permanece. Conversar com você era das coisas boas dessa vizinhança e acho que não vou deixar de sentir falta disso nunca. Daí a carta, que não resolve, mas ajuda um pouco.

Quero crer que, aí de onde você está, as comunicações são boas o suficiente pra que chegue a bom porto. Gostaria de saber das suas aventuras do lado de lá também, mas a comunicação pra cá não é tão eficiente. 

Vamos andando aqui, querido. Com alguma dificuldade. Vendo o que dá. Os tempos estão estranhos. Você não ia acreditar. Mesmo quem tá vivendo por aqui tá com dificuldade... mas vamos andando porque não tem outro jeito.

Um beijo grande, até outro dia.
Saudade sempre.
Obrigada por tudo.


Renata




foto daqui.

domingo, 12 de junho de 2016

As Mesmas Pessoas e Uma Nova História

Namorados... é em junho o dia. É hoje. Combina, acho. Fogueira. Friozinho. Bochechas afogueadas de dançar quadrilha. Maçã do amor. Comidinhas de milho. Tudo combina.

Eu gosto. Acho bonitinho. Gosto da ideia de Santo Antônio....  casamenteiro. Gosto de casamentos. Mesmo que não sejam oficiais. Mesmo que não tenha igreja. Cartório. É dos encontros que eu gosto, na real.

Tava lendo outro dia sobre o reencontro da Vanessa Redgrave com o Franco Nero. Coisa mais linda. Se encontraram em "Camelot" - o filme, não o lugar -, ela Guinevere, ele Lancelot: namoraram, tiveram um filho.... se separaram. Aí, várias décadas depois, se reencontraram.

Mesma história? Acho que não. Outra história, com algum sabor conhecido. Deram voltas na espiral do tempo, fizeram caminho. Encontraram outras pessoas. Verdadeiros encontros, não disfarces do "verdadeiro amor".

Tenho um amigo que fez esse caminho também. Depois de vários namoros e casamentos, reencontrou a primeira namorada: e parece que estão muito felizes. Eu o conheci no meio do caminho, e nunca tinha ouvido falar da primeira. Ele era inteiro, então. Paixões inteiras, histórias reais. Casamento, separação, outro casamento.

Agora, reencontrou a primeira namorada: todo o resto foi mentira? Aquele era o verdadeiro, o único, o do destino? Nem sei o que ele acha, ou ela. Mas tenho certeza que muita gente há de dizer isso. Como nos filmes. Como nos romances. O único, o verdadeiro, o predestinado.

Não acredito mesmo. Parece, porém, que o encontro foi gostoso. Está sendo. E, claro, deve ter uma graça em saber de histórias antigas, em lembrar de outras. Em reconhecer um jeito de olhar, um sorriso de canto, os movimentos das mãos. Acredito, sim, que afeto fica e pode ser pra toda vida. Mas não apaga outros amores, não abafa, não desfaz. Aquele tava lá, e podia  ter virado uma lembrança bonita. Aconteceu deles se reencontrarem, de estarem no tempo certo, disponíveis, interessados. Podia não ter acontecido. Um passo aqui, outro passo lá... a coreografia vai se fazendo a cada instante. O desenho completo, a gente só vê depois.

A Vanessa Redgrave e o Franco Nero fizeram um filme juntos que meio que conta essa história de amor perdido e reencontrado: um filme bonitinho e leve, chamado "Cartas Para Julieta". Gostoso de ver, esquecível toda vida. Não consigo deixar de pensar no quanto eles devem ter se divertido nas filmagens....












quarta-feira, 8 de junho de 2016

A primeira vez sem ele

Ela tá indo pra lá e me dá um aperto no peito, como se fosse eu. Ela não foi quando ele se foi, e eu entendi. Não deu. Acho que no lugar dela era capaz de eu não ir também. Ou não. Talvez fosse, pelos abraços. Pelo chorar junto. Já descobri que pra mim é importante o chorar junto. O não precisar explicar, não precisar dizer. Mas ela queria ficar quieta, no canto, e eu entendi.

Agora, vai. Porque lá é seu lugar também, e continua sendo. Porque ele continua lá também, mesmo não estando. Tem a história, a vida vivida, as lembranças dela, deles, de todo mundo que conviveu com ele e que o amou. E olha, era muita gente. Muita gente que o amava e que via que ele não tava bem. Embora não visse tanto. Ele saía, ele conversava, ele ria com a gente: então, como saber o tamanho do frio, a imensidão do escuro, a profundeza do abismo? Não dava. E se desse, não dá pra saber se daria pra ter feito algo.

Talvez não. Porque ficar é escolha. Ir é escolha. Acabei de ler um romance, leve, que trata disso: da escolha e do respeito à escolha. E me lembro, de novo, daquela conversa com tio Sylvio, em que ele me dizia que a gente sempre está sozinho, quando se joga na água gelada; a gente tá sozinho enquanto nada, e o que pode esperar é que tenha alguém com uma toalha felpuda aguardando na margem.
E isso não é certo.
O que é certo é que na água a gente está só.

Meu coração vai com ela. Minha saudade, meus abraços. Meus agradecimentos pela vida vivida. Pela bicicleta emprestada, pelas guerras de travesseiro, pelas brincadeiras, pelas risadas tantas. Pela encheção de saco, pelas discussões intermináveis. Pelo frio na barriga às vezes. Pela dança junto. Pelo olhar de lado.
Valeu, mermão.
A gente se encontra lá.
Por enquanto, mando meu coração com ela.

Com orgulho e com saudade.

sexta-feira, 3 de junho de 2016

Meu avô e John Lennon

Meu avô morreu no dia 25 de dezembro, no mesmo ano que o John Lennon. Meu avô. Cara. Eu, em certa época, dizia que tinha "complexo de Laio" e não complexo de Édipo, porque meu avô. Meu avô que lia comigo. Meu avô que deitava na rede e me contava histórias e compartilhava sonhos. Que desembaraçava o cabelo comprido e fino da minha irmã, e me ensinava. Que passeava, que nadava, que dançava, que contava piada como ninguém. 
Meu avô que era uma casa, uma fortaleza. Um esteio. Um aconchego. O abraço do meu avô. A gargalhada do meu avô. Meu avô olhando a placa de Euclides (seu homônimo) na Grécia, e dizendo à minha avó: "Vamos lá, Maria. Vamos fazer de conta que estamos entendendo". E tem essa foto, deles olhando pra placa "com cara de que estavam lendo". 
Meu avô comemorando as vitórias, cada uma. Violão? Olha que incrível. Esqui? Olha que fantástico. Ah, não deu dessa vez? Mas dará na próxima. É você. Não pode dar errado. Pode demorar um pouco mais, acaba dando certo. 
Meu avô na Argélia, conversando (sabe-se lá em que língua) com o garçom gentil do hotel, aquele que escreveu meu nome em árabe num guardanapo que eu guardei um tempão. Meu avô sentado na beira da piscina lendo Neruda em voz alta. Meu avô que não completou o ensino fundamental, meu avô que morou na favela, que tinha as costelas tortas de ter carregado peso no cais do porto quando era adolescente. 
Meu avô que amava passarinhos. E relógios. Que amava minha avó, que amava o mar.
Meu avô que era meu.
Ele morreu no dia 25 de dezembro, nasceu num 25 de abril.
Meu avô brigão, como eu. Meu parceiro. Me lembro de ter escrito, quando ele morreu: "ninguém mais vai me entender nessa família". Na família dos educados que é a minha. Em que ninguém destempera ou fala alto. Era meu avô e eu. Sobrei eu. 
E pra vocês verem.
Ele morreu no mesmo ano que John Lennon.
E eu tô aqui ouvindo John Lennon.
Escrevendo.
Chorando.


Eu, meu avô, Marcelo. Na Saint-Laurent.

quinta-feira, 2 de junho de 2016

Aos sete anos, eu ganhei uma vida nova


Esse é pra complementar o outro. Porque ficou parecendo. Porque a vida é chiaroscuro. É um lado e outro. É dor e delícia. E assim foi.
Perdi tudo, ganhei tudo. 


Renata até os sete: carioca, pernambucana, férias lá, vida cá, escola, piscina sempre que dava, a galera do prédio, Ana Paula minha melhor amiga; Recife, medir os cabelos com Elizabeth pra ver o de quem tava maior, ser a contramestra em pastoril dos primos, inventar histórias e peças, a casa do meu avô e todas as suas maravilhas, o quintal que a gente explorava, minha caneca de pastora junto com todas as canecas dos primos, que me dava a sensação de pertencimento...

Renata depois dos sete: o aprendizado das estações - chegamos na primavera e escurecia depois das oito, fomos pra colônia de férias no verão com os primos "franceses" Clarissa e Gui, começamos a escola no outono - "la rentrée", se chamava. Uma escola antiga, pesada, fria, com um pátio enorme, que tinha uma parte coberta. Uma professora antiga, Mme. Berger, que aos meus olhos de brasileirinha parecia muito severa (mas nem era tanto). Jean-Claude, o menino do lado do qual ela me botou, pra que ele me ajudasse no começo. Nosso apê da XXXI décembre, do qual dava pra ver o jet d'eau no fim da rua. Patins. O lago. Minha sala com o nome das montanhas em volta - La Dôle, le Mont Blanc, la Jungfrau e não lembro o último - indicando os pontos cardeais. 

Uma saudade funda, tão funda. Da vida, dos primos, do Recife, do Rio. Mas tanta coisa pra ver todo dia. A Vieille Ville e a biblioteca: paraíso. Aquela loja de brinquedos de madeira, com um Pinóquio na vitrine. Os Jouets Weber, andares e andares só de brinquedos: olha que maravilha. Os chocolates, o relógio de flores. Os brasileiros que já tavam lá: Claudius e Jo (e Claudia e Flávio, claro) no apê da frente, Paulo Freire e Elza, com os filhos mais novos - Joaquim foi meu primeiro professor de violão clássico. Como sofreu o pobre. 

A Escalade no dia 12 de dezembro, lembrando a invasão de Genebra pelos savoyards: "Ainsi périssent les ennemis de la république!". E os caldeirões de chocolate com legumes de marzipan, pra lembrar a Mère Royaume que despejou sopa quente na cabeça de dois dos invasores. Os parques: o Des Eaux-Vives e o De La Grange, um do lado do outro, que minha mãe chamava (claro) de Jardim Botânico e Parque Lage. O Álvaro, o colega brasileiro, que virou tão amigo.

A neve. O Natal na neve. As músicas tradicionais. As férias de neve, no período de Natal e Ano Novo. Na montanha. Chamrousse, nesse primeiro ano. Esqui, pela primeira vez. Cinema na cidadezinha, waffles (gaufres), piscina aquecida.

Era só pra dizer. Tem aquilo, mas também tem isso.
Não dá pra não lembrar. É tudo junto. Foi duro, foi precioso.
Como quase tudo.




O primeiro outono

quarta-feira, 1 de junho de 2016

Ela é a Princesa da Ervilha

A história da princesa da ervilha (de H.C. Andersen) é uma dessas que me pegou pela incompreensão. E pelo absurdo. Eu não entendia direito aquilo, a moça chegando molhada no castelo alheio e dizendo que era uma princesa, a pilha de colchões e de cobertores em cima da qual dormiu - um teste para saber se ela era realmente uma princesa, como dizia - , o dia seguinte com o ombro roxo e a constatação: se tinha sentido a ervilha com aquilo tudo por cima, não havia dúvidas, era mesmo uma princesa. Minha taurinidade criança achava tudo estranho, embora engraçado. Claro que ela não podia ter sentido a ervilha com uma pilha de coisas daquele tamanho. Ora. E como era isso mesmo de pele de princesa? 

Depois eu comecei a achar essa história errada. Elitista. O que é isso, meu senhor, o sr. está mesmo dizendo que a pele das princesas é tão fina, tão sensível, que ela teria sentido a ervilha embaixo daquela montanha de colchões e colchas? Que elitismo. Que vergonha. E eeeeu/ gostava tanto de vocêêê..... 

Por fim é que me dei conta: era ironia. Claro. Óbvio. Ululante. Mané-eu. Como não tinha me dado conta. O plebeu Andersen fazendo chacota das classes dominantes, como tantas vezes. E eu tinha caído. Como tanta gente, imagino. Mas a vantagem da minha cabeça teimosa é continuar minhocando: às vezes dá certo e aparecem novas formas de ver. Fiquei feliz, porque afinal sempre tinha gostado daquela história. Curtinha e engraçada. Podia gostar sem culpa: Andersen continuava mandando bem.

Mas isso tudo é pra falar dela. Ela, a princesa. Ela nem sabe, e nem eu sabia até ontem, quando essa imagem me veio. Mas é ela mesma. Doce e delicada. Gentil e cuidadosa. Atenta aos outros. Generosa. E nada disso impede que tenha senso de humor: é também uma das pessoas mais engraçadas que conheço. Só que a sensibilidade é essa, à flor da pele, à flor da alma. Mesmo com todas as peles, as colchas, os colchões por cima, ela sente a ervilha. Ela se magoa. Se fecha em concha. Em copas. Em silêncios. Em cílios.

Não dirá, é claro: não ficaria nem bem. O que faz com que você, viajante desavisado, é que tenha que perceber. Olha a responsa. Olha a dificuldade. Pra mim, elefanta, obelixa, desajeitada e desastrada, dificuldade ainda maior: quando vejo já falei, quando me dou conta já foi, e aí já era. Babau.

Por isso é que me alegro tanto dela me considerar amiga. De poder estar em sua companhia por aqui ou por lá, ouvir suas histórias de quando era atriz e trabalhou no Hair, dar palpite nesse ou naquele texto, rir junto até ficar sem fôlego. Às vezes cá e lá. Que tanto faz. Não entendo muito, mas agradeço de verdade. Uma alegria de todo dia ser amiga da Princesa. Uma alegria, um presente da vida. Não sei o que fiz pra merecer, mas agradeço.

(Sorrisos. De leve.)




Com sete anos eu perdi tudo

Eu brinquei lá, junto com todo mundo. E contei o que eu tinha com sete anos. Uma bicicleta, uns livros do Monteiro Lobato, e outras coisinhas.

Mas, no fundo da minha cabeça, estava aquilo: eu tinha e logo depois não tinha mais. Eu tinha com sete anos, e com sete anos e meio perdi. Minha casa, o quarto dos brinquedos, minha bicicleta, as bonecas de que eu gostava, a bicama laranja em que eu dormia com meu irmão, o colégio e os amigos, as férias no Recife e os primos. Tudo.

Quando eu tinha sete anos e meio, a minha tia estava presa e eu não sabia. A polícia bateu na minha casa e eu só soube bem depois. O que eu soube foi que as férias de verão não acabavam nunca, que as aulas dos meus primos iam começar e a gente ainda não tinha voltado pra casa. E um dia, quando eu já estava achando tudo aquilo bem estranho, a minha mãe chegou. Era ela, mas diferente: em vez do cabelão preto, um cabelo curto, com mechas. E dali a gente iria embora. Do Recife mesmo, com a mala das férias.

Quando eu tinha sete anos e meio, eu tinha coisas. Uma casa. Amigos. O cabelo comprido. E depois não tive mais.
De tudo, o que eu senti mais falta foram os álbuns: um meu, um de Marcelo. Aqueles álbuns com fotos de bebê.  Eu tinha, e não tive mais.

O ano em que completei oito anos: o ano da virada. Da tempestade. Da grande viagem. Do tudo a ser começado do zero. Uma vida que eu nunca tinha imaginado. Tudo. Nada. Sete anos e uns meses.