domingo, 30 de outubro de 2011

30 livros em um mês - dia 17

"Um livro que é um prazer culpado".
...demorei, procrastinei, enrolei, atrasei... e nem sei exatamente o motivo. Como de hábito quando atraso, passeei mentalmente por vários livros: um que era um prazer culpado porque o roubei numa feira de livros na escola - era o último dia, eu não tinha levado dinheiro, não consegui emprestado e... fiquei tão culpada que depois de acabar de ler escondi numa estante lá no fundo, pra nem ver o livro. Outro que era (é) um prazer culpado porque é um livro mal escrito. E disso tenho certa vergonha de gostar: mas gosto, fazer o que. 

Acabei parando n'"O Cortiço", de Aluísio Azevedo: uns 14 anos, férias na praia com tia Sônia, tio Antoninho e o bando (dez ou em torno disso) de crianças e adolescentes que eles carregavam pra "veranear". Casa sem nenhum luxo, todo mundo em colchões no chão e um permanente divertimento. Na casa ao lado, a família de Pelópidas da Silveira e meu primo cantando prá filha dele, Taís: "Taís, eu fiz tudo pra você gostar de mim"...

Nesse verão aí, Tia Sônia tava lendo O Cortiço e afirmou, em dado momento: "não é pra vocês". Disse e, claro, largou o livro por aí. E a gente leu, como não... Leu e amou... culpadamente. Rita Baiana, a brasileira, encantando com sua dança o português Jerônimo. Jerônimo e sua mulher portuguesa, de quem ele não gostava mais nem do cheiro (e isso muito me impressionou). Jerônimo que vai deixando seus hábitos "portugueses", de homem sério e trabalhador, e vai incorporando os "brasileiros", a preguiça, o prazer pela vida, e vai se enredando progressivamente na teia de Rita Baiana, num misto de fascinação e repugnância, inexoravelmente.

Um livro que fala de contágios e de transformações. De gente que era e que não é mais.De contatos, de peles, de fluidos. Um livro escancarado que a adolescente que eu era sorvia a largas páginas, antes que. Vai que tia Sônia de fato proibisse. 

E, de todas as personagens, a que mais me fascinava era Pombinha, santa, pura, virgem, cuja madrinha "de vida fácil" aproveita-se de sua inocência e, aos poucos, vai transformando-a no que ela está fadada a ser. Pombinha, moça fina e pálida, e seu encontro, a um só tempo assustador e maravilhoso, com essa mulher mais velha, excessivamente maquiada, excessivamente perfumada. E ela nunca mais será a mesma. O livro descreve a incompreensão da moça, seu susto, e os olhos lúbricos da madrinha, atraindo-a, desejando-a, seduzindo-a para finalmente devorá-la qual aranha determinada.
Submundo. 
Submundo que traga e tritura, que suga e transmuta. Uma alegoria da chegada de Perséfone ao Hades. Uma alegoria de Escorpião, o signo da morte e do renascimento.
Imaginem.Eu nunca tinha lido nada parecido.
E nunca reli "O Cortiço": o que conto aqui é o que lembro dessa leitura pretensamente escondida, na casa de praia em Pau Amarelo, compartilhada com primos. Leitura de areia, sol, jangada, colchões no chão e muita risada.

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

30 livros em um mês - dia 16

O do dia 16 é "um livro favorito que virou filme". Já escrevi aqui sobre um deles. Então o de hoje será "O Nome da Rosa". Umberto Eco. E começo contando que li O Nome da Rosa em italiano, que eu entendo bastante bem, mas só bastante. Li muito livro de economia em italiano, o que me deu um bom vocabulário - de economia. Aí me meti a ler (porque tinha na casa dos meus pais) o Umberto Eco: metida geral. 
Mas é também uma brincadeira, também um exercício que gosto de fazer: aprender língua através de livros. Lembro de um personagem de Julio Verne que fazia isso: só que como era muito distraído, ia prá Argentina e leu (com gramática e dicionário) "Os Lusíadas"... 
Enfim. Livro em língua que não se conhece direito é um pouco mais misterioso, às vezes mais assustador. 
O primeiro Agatha Christie que li em inglês eu entendia mais ou menos uma palavra em cinco, e o jogo era não olhar no dicionário: eu ia testando significados e quando achava um que se encaixava bem voltava, pra ver se encaixava em todas as ocorrências. A palavra "nod" eu só consegui identificar no final do livro, e me orgulho disso até hoje (tanto que acho que já contei isso em outro post...).
Divago. 
Domingo à noite. 
Sol em Escorpião, chegando agora.
Sobre o livro: tudo de bom, claro. História policial. Acenos aos amantes do gênero, como o nome do personagem principal: Guilherme de Baskerville. Num monastério, lugar excelente pra crimes. Envolvendo biblioteca, livros, copistas. E cheio de paralelas, como a deliciosa discussão entre monges sobre  a pobreza de Jesus. Horas discutindo se Jesus teria carteira - o que provaria que não era pobre. Pobre não tem carteira. 
Montes de rodapés sobre grupos religiosos da Idade Média.
Um livro bom de ler à beça.


E o filme de Jean-Jacques Annaud é uma adaptação que considero fantástica. Porque transformar aquele livrão num filme de duas horas é um feito: de quem será o roteiro?


[pausa pra verificar]


Voltando... o roteiro é de quatro pessoas, que não vou listar aqui (gente em excesso). Mas nem me admira tanta gente envolvida. Ficou muito bom e era bem difícil. Porque tem tramas demais, questões demais. O roteiro do filme ficou limpo e manteve as questões  principais, a meu ver: a história de suspense, o contexto religioso, a questão filosófica fundamental envolvendo os assassinatos - o poder subversivo do riso. Questão extremamente atual. De que riso se fala quando se fala em riso subversivo. Já que, como temos visto repetidamente, há risos também extremamente conservadores. Mas os cartunistas em épocas de ditadura não se enganavam quanto a seu próprio papel: o riso tira o poder dos opressores, o riso dá ânimo e energia aos que lutam. O riso liberta. 


A gente precisa se lembrar, e quem sabe reaprender.





sábado, 22 de outubro de 2011

30 livros em um mês - dia 15

"O livro favorito dos feriados e das folgas". Feriados e folgas? Bom, aí tem que ser um policial, claro. Eu tenho tara por livros policiais. E é tara mesmo, um vício: às vezes eu tô sem grana, sem tempo, sem possibilidade nenhuma de comprar livro e aí... vejo o novo Ian Rankin, o novo P. D. James, um antigo do Rex Stout que eu não tinha lido... dá água na boca, aperta o estômago e eu entro num automático: quando vejo, lá estamos, eu e o livro, na fila do caixa. Inexoravelmente.

Meu pai sofria de algo parecido - e, não por acaso, foi ele que me falou pela primeira vez de Miss Marple ("a natureza humana não muda") e de Poirot, era ele que comprava e largava os Maigrets pela casa. Meu avô, pai dele, foi quem me apresentou a Charlie Chan, outro velho amigo: vai ver é genético. Alguns descobri sozinha, ou por meio de outros amigos, de outros livros: Nero Wolfe, Lord Peter Wimsey, Dalgliesh, o inspetor Rebus. E esses são meus "comfort-books" por excelência, onde eu me enrosco e busco aconchego em dias de tempestade. Se for inglês e cheio de subtons, se for escrito por mulher, melhor. Mais em casa estarei. Como num chá da tarde, num dia branco e frio, perto de uma lareira, com quem sabe um gato e muitas almofadas.

Então, pra hoje, escolho um desses: um que em inglês se chama "4:50 from Paddington" - um horário de trem - ou, mais impactante e menos interessantemente, "What Miss McGillicuddy saw". Em português o coitado do livro tem que carregar pela sua sofrida vida de livro o horroroso título de "Testemunha ocular do crime", que tão pouco combina com sua natureza de tintas pastel e ruídos abafados. Enfim. Agruras de livros. Compadeço-me.
Esse é um que reúne os ingredientes: inglês (um Agatha Christie, pois não), passado no campo, em uma daquelas casas enormes tão apropriadas para serem cenário de múltiplas intrigas e mistérios. 

É um Miss Marple. Mas a personagem principal, que me encanta e é o motivo da escolha aqui, é Lucy Eyelesbarrow: uma moça que, tendo obtido um diploma de matemática por Oxford, decide, por não apreciar a vida acadêmica e por ver o que ela fez com seus pares potenciais - e esse trecho do livro, a apresentação da personagem, é delicioso, com um bemol irônico e leve tão característico dos melhores momentos de A.Christie -, investir num ramo que julga bem mais divertido e lucrativo, dada a escassez de oferta: o dos serviços domésticos "de emergência". 
Agatha Christie viveu um tempo de transição na Inglaterra: tempo em que a aristocracia estava ainda se acostumando, mal e mal, a não ser mais servida por uma multidão de empregados, como anteriormente. Assim, muitos de seus personagens são esses aristocratas decadentes, saudosos de tempos de fausto que não voltarão mais.

E, voltando a Lucy Eyelesbarrow, é isso: para surpresa e desgosto dos seus professores e colegas, ela abandona a universidade e vai ser um misto de cozinheira/faxineira/governanta, por preço alto e tempo sempre limitado.
Uma personagem muito interessante.


Vejo na wikipedia que a publicação do livro é de 1957: dez anos depois da guerra, o mundo em reconstrução, e Agatha Christie escrevia sobre aristocratas decadentes, burgueses ascendentes e deselegantes, refugiados belgas que viram detetives, universitárias-faxineiras. E eu com ela me encanto, sabendo de todos os preconceitos, de todos os não-li-e-não-gostei. Mas fazer o quê. Aprendi que o melhor é a gente se acolher. Acolher primeiro: depois, talvez, tentar entender. Do meu fascínio por policiais eu já tentei várias vezes identificar a causa, e mapeei alguns pontos: a trama fechada que reconforta - no fim, tudo se explica e se resolve; fundamental em tempos em que o mundo parece não fazer nenhum sentido -, a recorrência de personagens de um livro para o outro (no caso de Agatha Christie, além dos detetives e de seus parceiros, alguns  secundários reaparecem, ocasionalmente, e piscam pros leitores assíduos). Não sei se explica: só sei que é. É assim... fazer o quê. Acolho e, em dias em que o coração aperta, neles me aconchego. E espero passar a tempestade.

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

30 livros em um mês - dia 14

"Um livro que te faz lembrar de alguém". E, claro, pra variar, passeei por vários: o Neruda de "Confesso que Vivi" - meu avô lendo em voz alta, a gente naquele hotel branco em Argel, à beira da falésia. Neruda tem gosto de meu avô pra sempre. E esse era o primeiro que eu tinha escolhido.
Mas não vai ser.

Vai ser - e só pensei nisso hoje - "Cleo e Daniel". Roberto Freire: não o político, o outro. O psicanalista. Que no livro é o narrador contando a história de Cleo e Daniel.
Esse me lembra Lourdes. Lourdes, 35; Renata, 15. Lourdes que tinha acabado de se separar, que morava num apê térreo e com quintalzinho no Leblon, que tinha amigos artistas, cartunistas, poetas. Renata, ainda meio forasteira, num ano-chave: ano de primeiras vezes. Cabelo enorme e emaranhado, em carne viva, frio de gente, literaturas. Silêncios. Basta pensar que sinto um arrepio no peito. Ano dureza. Antes e depois dos quinze anos.


Nesse ano aí, fiquei pouco em casa: além de fazer tanta coisa na rua e chegar sempre tarde, dormia muito fora. Na casa de Claudia, na casa da Flávia. E na casa de Lourdes. A gente ia comer pizza provençale na Bella Blu do Leblon e tomar sangria. A gente ia naquele pequenininho e lindo, que fechou e do qual não lembro o nome: um que tinha um mural de avisos que eu adorava ler, e era do lado do ... Antonio's? 


E "Cleo e Daniel" era da casa de Lourdes: como tantos, puxei de uma estante qualquer. Casa de gente, pra mim, é casa e livros: mesmo que eu não mexa, mesmo que eu não tenha intimidade, sempre tento olhar, fazer o panorama dos livros. Dali dá pra saber tanta coisa. Dá pra vislumbrar tantas outras.


Mas "Cleo e Daniel" - Leblon, Lourdes, 15 anos, pizza, sangria, cabelos - era eu também. Era o meu desejo. Um livro sobre adolescentes. Um livro sobre amor livre. Um livro sobre dores de crescimento.  Era eu o tempo todo e por isso ficou. Era tudo o que eu queria, tudo o que eu não tinha: um grupo, um sentimento de violão com fogueira, uma gente se aquecendo, um amor imenso. E o que eu tinha: uma solidão, uma dor de viver, um não-entender.


Lourdes tinha 35 e parecia viver isso que eu sonhava e não tinha. Músicas, fumo, festas no quintalzinho. Um congresso de ioga em Itaipava. Amigos de monte que entravam, ficavam. Dormiam. Saíam, voltavam.
Eu olhava com olhos grandes de susto e vontade.
Foi no ano dos meus quinze anos.
Era "Cleo e Daniel". Que me lembra Lourdes.





segunda-feira, 17 de outubro de 2011

30 livros em um mês - dia 13

"Um livro que te faz lembrar de alguma coisa, um dia" - bom, como copiei a lista da Niara, só posso supor que isso deve querer dizer "alguma coisa, algum dia". Não que mude muito...


E... que livro será que não me faz lembrar de "alguma coisa"? 


Mas vamos lá. Desafio é assim mesmo.


E o livro será (pra minha surpresa - porque às vezes penso antes, mas esse eu nem tinha lido o que era e só pensei agora) "O Encontro Marcado". Porque assim funciona a memória, porque reli o post anterior e que por isso Alexandre está na minha cabeça, de leve. E "O Encontro Marcado" é dele. É "o" dele. 


Não sei se ainda é: mas nessa época, era. Quando eu tinha dezesseis e ele dezessete. A gente tinha se conhecido na Aliança, e ele era um "odd man out" naquela turma de senhoras e de filhos de exilados. Ele tinha dezessete e era só megaestudioso, inteligente. E por isso tinha ido parar ali, no Nancy, no fim da adolescência. E nem tinha morado fora nem nada. Alexandre tinha voltado de Minas há pouco tempo, e se considerava meio mineiro: por conta dele, passei a simpatizar com o Cruzeiro (e, evidentemente - duas faces da mesma moeda -  a não gostar do Galo). Por conta dele, BH passou a fazer parte da minha vida, pela via netuniana das memórias emprestadas. E BH fazia falta a ele, que não se entendia mais no Rio. 


Por isso, talvez, "O Encontro Marcado" tenha sido tão importante. Livro autobiográfico, "roman à clé" com chave tão fácil de achar: bem à vista, embaixo do capacho mas com a ponta brilhando pra fora. Fernando Sabino ("Eduardo Marciano") e seus amigos de juventude -  Otto Lara Resende e Hélio Pellegrino, "Hugo" e "Mauro", e também Paulo Mendes Campos (por quem nutro particular simpatia e por isso destaco - o texto é meu, oras). 
Livro angustiado, livro de amizades eternas, livro que fala de escolhas e de caminhos. Bebedeiras, conversas até não mais poder, namoros, diferenças sociais - por conta do namoro e depois casamento de Eduardo com uma filha de político importante. E livros, literatura, escrita sempre. 


Sonhos. Sonhos realizados, sonhos abandonados. Acho que isso é o que mais me toca, e talvez também o que mais tocava Alexandre: os sonhos, o devir, o vir-a-ser que só será caso se tenha a audácia de percorrer certos caminhos, de assumir certos riscos. "Viver é muito perigoso", como já dizia outro mineiro. Mas só é bom porque é perigoso, digo eu.(Ia dizer mais alguma coisa sobre isso, mas desisti e deletei pra não virar "post de autoajuda".)


Li e me assustei com o tanto de amargura contido ali. Alexandre aos dezessete tinha isso também. E, claro, fazia parte do encanto: sempre gostei de gente com marcas na alma. E eu, nessa idade, era um ser em carne viva, em tons de cinza e preto, olhos delineados e espinhos a proteger da estranheza do mundo. Colar-grisgris dado por Sakho, da Guiné Conakri: couro e dentes de tigre. Essa era eu. Mas, se eu tinha raiva, revolta, sede e angústia, não tinha (nem tenho) amargura: o travo do que não se fez, do que não se viveu. E me impressionava essa melancolia dura nesse cara tão novo. E no livro do Sabino, que ecoava tão precisamente seus sentimentos.


Revisito o tempo d'"O Encontro Marcado" com muito carinho por aqueles dois seres tão despreparados e ansiosos - Alexandre e Renata. Tantas vontades, tanta vida não vivida, tanto medo de não conseguir. De não acertar. De perder a entrada, a curva certa que nos levaria ao pote no final do arco-íris. De se deixar enredar pelos cipós traiçoeiros, de afundar nos lamaçais escondidos. Revisito com carinho e nenhuma saudade. Com uma sensação de "ufa". Passou. Saí. Sem nenhuma vontade de voltar. Longe de mim a melancolia dos "verdes anos". Argh. Tô fora. Sou mais agora. Mesmo que os tempos de agora sejam mais desencantados: sou mais eu-agora. Agora que descobri alguns códigos, agora que sou mais "parecida comigo", como diz a Luciana.Agora que já vivi um monte e não fiquei só à espera.


E ainda tem um tanto para. Mas o olhar pra trás ajuda.







domingo, 16 de outubro de 2011

30 livros em um mês - dia 12

E chegamos ao livro de ficção científica.
Well (s).
Esse tá longe de ser meu tema predileto. Pra dizer o mínimo. 
Não gosto de falar de bichos, mas acho que gosto menos ainda de falar de tecnologia. Tecnologia: pra usar, não pra falar a respeito. Pelo menos no meu mundo.
Mas, bem, livros de ficção científica não são necessariamente sobre tecnologia, não é. Tão aí o Orwell, o próprio H.G.Wells, o Philip K. Dick, o Aldous Huxley e tantos outros que não me deixam mentir. Muitas vezes, livros de ficção científica são sobre gente. E disso eu gosto de falar. Embora não sob esse enfoque: mas aprendi muito lendo os citados acima. 
O livro que eu queria comentar aqui, no entanto, é de outro autor - é o "Nove amanhãs" do Asimov. Um livro que uma pessoa querida me recomendou: eu nunca o teria tirado da estante por conta própria. Mas ficou. "Nove amanhãs" se divide em nove episódios independentes, que falam de futuros cada vez mais distantes.  E eu queria comentar um deles em particular: e como, nas minhas regras para este jogo, eu não consulto os livros -  a estante é a da memória, não a da parede -, nem sei qual deles é. E este eu nunca mais li, nem era meu; nunca mais encontrei com ele. O que quer dizer que as imprecisões da história são esperadas. Não importa: vamos a ela e ao que dela em mim ficou.
A história é a seguinte: um jovem acorda, um dia, num beliche em lugar desconhecido. Acorda e lembra vagamente, talvez, de ter sido levado pra lá. É uma fazenda, um lugar isolado, onde há outros iguais a ele. No começo acha tudo estranho, e tenta imaginar o motivo daquilo: quem sabe, por ser rebelde, por não se deixar enquadrar tão facilmente, teria sido punido, e ali seja um tipo de colônia correcional. Um lugar para gente que não está adaptada, que precisa ser domada. Essa sensação fica mais forte ainda quando percebe que é obrigado a cumprir uma rotina de estudos, e que ali não há, como seria de se esperar, os computadores que informam tudo e ajudam a organizar a vida cotidiana: ali, o método de aprendizagem é aquele antigo, de que só tinha ouvido falar - usando livros, imaginem. Livros, aqueles objetos que ele acreditava estarem extintos por obsolescência: pra que alguém precisaria de livros, se os computadores já continham em si todas as respostas a todas as perguntas?  
A história segue assim, meio em ritmo de suspense, até que, bem lá no final, seu interlocutor principal esclarece o mistério: não, aquilo não é uma punição. Ao contrário, é uma mostra de reconhecimento da sua inteligência, da sua originalidade. Da sua capacidade de criar caminhos próprios, fora dos previamente traçados. E para que é que eles estão ali, pergunta o rapaz. E a resposta: "você já pensou que alguém tem que alimentar os computadores?"....


Quando li esta história, há tanto tanto tempo, a gente nem imaginava os computadores espalhados no mundo como estão hoje. A gente nem sabia que eu estaria escrevendo num computador, e menos ainda que quando eu acabasse de escrever daria um clique e... pronto.
Porque teve os computadores pessoais, é certo, e mudaram muitas coisas; mas depois teve a net. E a vida nunca mais foi igual. Na época em que o Asimov escreveu, nada disso existia, nem no mais maluco sonho de alguém. Então os computadores dessa história eram máquinas de armazenar dados: não eram usados para comunicação. Sobretudo não para a comunicação em rede: o que ainda é algo diverso.  E isso me lembra uma atração da Disney (o Felipe tá lá, é por isso que esse tema tá recorrente): "Futuros que não aconteceram"- Brasília também me lembra isso, aliás.
Mas o ponto que me toca aqui é a afirmação de Asimov, esta sim atualíssima e cada vez mais, da importância do "fator humano". Da importância do homem por trás da máquina. Não importam os computadores, não importa a rede. Importam os homens que constroem e destroem a tecnologia. O saber dos computadores não é dos computadores: é das pessoas. Que inventam, criam, traçam caminhos, desviam-se, movidas por paixões, por interesses, criando novos caminhos, novos rumos, novos futuros. A tecnologia não é sozinha. A tecnologia vem depois.
Isso o Asimov sabia, e eu nunca mais esqueci.
Só fui ler Marx bem depois. 
Mas quem sabe teve a ver.

sábado, 15 de outubro de 2011

30 livros em um mês - dia 11



E chegamos ao dia 11, cujo tema é "o livro favorito com animais". E possivelmente o meu é o mesmo da Niara, mas não vou falar dele: ela já falou tão bem.. E adorei o do Pádua - cujo personagem central conheci (onde mais?) no "meu mundo" de Lobato, nos Doze Trabalhos. O asno Lúcio entra nas aventuras da turma do Sítio, fica amigo da galera e carrega por um tempo o Visconde e a canastrinha da Emília, conversando e contando sua história.

Pensei seriamente em burlar e falar do "Beijo da Mulher Aranha" (ainda vou), mas como sou meio certinha, confessei antes, e o Pádua me ameaçou com uma punição que envolvia mais um monte de posts. Aí, "dormi sobre o assunto" e desisti.

E vou falar, então, de um de bicho "de mesmo". Se bem que aranha é bicho, e nesse do Puig ainda fala da mulher-pantera... enfim. Isso vai ficar pra depois.  Vamos ao atual.
Acabei escolhendo um que conheci pela escola: em Genebra, na escola, em vez de livros, a gente tinha fichários de leitura: algo parecido com aquela série fantástica escrita pelo povo de Minas, "Para Gostar de Ler". Temas que organizavam trechos de livros, poemas ou crônicas específicas. Um ótimo jeito de se achegar ao tortuoso e deslumbrante mundo da literatura. 

Por conta da ficha, comprei o livro - ou peguei na biblioteca, o que é mais provável. Era "Le Lion", de Joseph Kessel. Dou uma googleada e descubro que existe em português: mas nem sabia. "Le Lion" conta uma história na primeira pessoa. O narrador é um visitante de um parque no Kenya - um daqueles parques de "vida selvagem", para viajantes em busca de uma exótica experiência de safari. Um Magic Kingdom de Africa. Com gente real, com animais de verdade. 

Ali, o narrador conhece e se encanta com a filha do administrador do parque, Patricia. Patricia, criada naquela realidade não-real, que no entanto era a dela: no meio de guerreiros masai, de animais selvagens. Patricia de grandes olhos, de cabelos curtos e macacão. Patricia e King: "seu" leão. King tinha sido levado, pequeno e frágil, à casa do administrador, e lá tinha crescido até ficar grande demais e ser deixado solto no parque. Mas entre o leão e a menina já tinham se criado, irremediavelmente,  vínculos de fidelidade, de afeto, de vida. Uma história de amor linda e fadada ao fracasso. Fadada à tragédia, quando Patricia lança o leão sobre o mais forte e mais elegante dos guerreiros masai, que a tinha contrariado. E o pai dela tem que escolher entre atirar no guerreiro e atirar no leão. Uma escolha que não existe, claro. O leão morre.

E, com a morte de King, a história do livro é também a da morte da infância de Patricia, o final da vida-tal-como-ela-a-conhecia: porque, se ser criada no parque, no meio de guerreiros masai e tendo como maior companheiro um leão é "permitido" até certa idade, isso deixa de ser conveniente ou possível na entrada da adolescência, quando Patricia vai ter que assumir sua posição de menina branca de classe dominante. Uma posição que ela odeia, mas à qual se submete afinal, e cede.

O livro traça em certeiras pinceladas o retrato sofrido dos personagens secundários que são os pais de Patrícia, Sybil e Bullit: um casal dilacerado por conta do amor não-compartilhado pela selva africana. O fim da infância de Patricia, a morte do ser selvagem que era ela até então, é, também, a vitória da frágil e linda mãe, que sobrevive solitária e à base de remédios no que para ela constitui um inferno cotidiano. A derrota do pai, que por um momento teve a ilusão de que Patricia poderia crescer selvagem e livre, no simulacro de liberdade que é a selva com grades em que moram.

 O final do livro mostra a menina submissa e triste abandonando o parque de sua infância pela perspectiva de virar uma "moça bem-comportada". O narrador, seu cúmplice e seu admirador, observa a derrota, e o livro acaba sem certezas. Sem final feliz. Aberto. Como acabam livros "para crianças" que respeitam as crianças, sem precisar dar-lhes o falso conforto de uma história resolvida. 
Não se sabe o que acontecerá a Patricia. Sabe-se da dor do momento da partida. Da dor do pai, que com ela compartilha o amor pelo Kenya - um amor de brancos-chefes, mas, ainda assim, um amor. Sabe-se, enfim, da vitória final da mãe, a exilada por paixão por um marido que não a entende, e que ela não entende. A filha será criada como ela queria: 
Dali, a gente só imagina.

P.S.
Quando comecei a escrever achei que ia escrever sobre dois: e o segundo era "Os três mosqueteiros". Por conta do primeiro capítulo, essencial como são os primeiros capítulos, e que conta do cavalo amarelo de D'Artagnan. Mas seria meio que burlar também, talvez. (...?)

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Em dia de Vênus, de uma súdita

Sexta-feira - vendredi, venerdi, viernes - é dia de Vênus. Dia de homenageá-la, pois. E eu sou de Vênus: touro, signo regido pela deusa Afrodite. 
A casa onde eu cresci era de Vênus: dois taurinos - meu irmão e eu - e duas librianas - minha mãe e minha irmã. O único que não era (meu pai virginiano) olhava para isso tudo com humor e algum distanciamento. Achava graça, não se misturava; mas gostava, ah, gostava.


Desde cedo, por conta dessa configuração aí, me coube observar as diferenças entre a Vênus libriana e a taurina: faces diversas da deusa.


 A Vênus de libra é estética até a raiz dos cabelos, até a ponta dos saltos. Harmonia, elegância, comedimento. Balanço de cores, de linhas: Vênus-decoradora, Vênus-estilista. Minha sobrinha Maria (mais uma libriana para o pacote) vendo televisão comigo: "Tia Tata, o batom daquela moça não combina com a roupa dela!". Eu, boquiaberta como sempre. Minha irmã libriana a chorar pelo quadro cujo azul não combinava com o vermelho do quarto dela. Eu, toda dos contrastes, pensando quem teria deixado aquele changeling na porta da minha casa. Quer dizer, pensaria isso, se não fosse minha mãe. Minha mãe e seu amor aos conjuntinhos, tão librianos. Minha mãe morena, horas diante do espelho: o tom certo de batom, o contorno, a base, as sobrancelhas. Minha primeira professora da arte da maquiagem. Só de olhar, aprendi quase tudo.


Já a Vênus taurina é sensação: a sensação da explosão de cores da primavera, que a gente tenta reproduzir na paleta, nos lápis de cor. A sensação das texturas dos pincéis, das tintas, do vermelho líquido e daquele mais opaco... sensação do paladar, claro. Muito. E eu até hoje tenho a mesma sensação quando cozinho e quando desenho: uma certa alegria interior, de ir pegando e misturando, harmonizando e contrastando, tons, matizes, sabores. Tudo junto e misturado. Não cozinho tanto, não desenho mais tanto: mas esse é meu melhor eu, o da criação alegre, o da brincadeira que gera: pratos e desenhos. Nunca ao mesmo tempo, mas quem sabe. 
Meu irmão taurino, mais contido, é tão parecido comigo e pouca gente sabe: só dois anos de diferença e a gente quase não precisava falar pra se entender. A gente no cinema, e bastava um: "você viu?" "você ouviu?" E o outro já sabia, porque a gente pensava tão parecido. A gente morou uma pá de tempo juntos, e funcionava tão bem: prioridades similares. O meu, o seu, o nosso, tão definidos. Meu irmão que sempre comprou anéis de prata, colares, com um  gosto tão certeiro que dói. Que já trouxe de viagem, vejam só, até batom de presente. Sem me perguntar. E - bien sûr - na mosca. Nossas feiras de sábado na General, e os almoços que a gente produzia. Prá gente, pros amigos, pra quem estivesse pela Moura Brasil, o apê era grande e sempre cabia mais um. E vinha.


O dia hoje é de Vênus, viva ela. O dia hoje é da gente, vamos aproveitar. Lindamente aproveitar.










segunda-feira, 10 de outubro de 2011

30 livros em um mês - dia 10

E, no dia 10, o "clássico" favorito.


Ahã.


Clássico tá entre aspas só no meu. Porque tenho dificuldade, pois não. O que é clássico? Sei direito não, juro. Sou meio vira-lata.
Sou bem vira-lata, aliás. 
E nunca separei livros em "clássicos" e "outros": minhas organizações são outras. Na minha casa nunca se deu muita bola pra essa categoria aí: "clássicos". Acho que quem gosta mesmo de livro - gosta, quer dizer, tem intimidade; não admiração, ou respeito, ou sei lá - não liga muito pra isso: gosta de ler, lê o que gosta, cria seus próprios clássicos.

Bom.

Mas acontece que eu fiz um curso de "língua e literatura francesas" - diploma e tudo. Fiz porque dava, porque eu falava francês, porque era perto. Fiz, em primeiro lugar, porque era um espaço de acolhida, um espaço onde as gentes me entendiam e eu entendia as gentes. Talvez, àquela época, o único espaço.
Era um curso de três anos: e eu tive que fazer em quatro. Isso porque cheguei ao final do terceiro ano com 17 anos - e como o curso dava um diploma que, na França, era universitário (e aqui poderia ter virado também, caso eu tivesse feito o ano de complementação pedagógica - aí eu teria uma licenciatura. Não fiz), eu só podia acabar com 18. O diretor da Aliança, Bernard Plaud, achava que se ele escrevesse pra lá, se explicasse que eu era boa aluna, blá-blá-blá... eles me liberavam.
Não deu pra ser, os caras não abriram exceção e eu fiz mais um ano - que não paguei, diga-se. E fiz feliz: estudei outros livros,  sob a batuta inspiradora de mestre Karydakis.

Isso tudo pra explicar que eu li, nesse contexto, alguns "clássicos": Candide, de Voltaire, O Vermelho e o Negro, de Stendhal, Madame Bovary. Flaubert.

E esse é o meu: não sei se porque o Karydakis transmitiu a paixão que era dele pelo livro, pelo autor à busca da palavra exata. Lembro dele contando da proibição do uso do nome "Journal de Rouen", que foi substituído por "Fanal de Rouen", pra dar uma sonoridade parecida.
Com Madame Bovary,  eu aprendi que qualquer história é história. Porque o que me encantou, levada pelo olhar do Karydakis, não foi a história: a história era a mais irrelevante possível, como queria Flaubert. Uma história de "fait-divers" de jornal, uma história banal. Uma história qualquer elevada a jóia rara pela arte do texto construído, lapidado, polido. Um dia para escrever um parágrafo, o cuidado na seleção dos nomes dos personagens, a atenção a cada frase - melodia, andamento... como se fosse uma composição musical. O esforço de parecer simples. 

Não sei qual era o signo de Flaubert, mas esse universo me evoca, em tudo, o signo da simplicidade e do amor aos detalhes: Virgem, um signo que esconde o brilho nas miudezas de que cuida, com atenção sustentada e cuidado permanente. 
Madame Bovary, uma mulher qualquer, um amor qualquer, uma morte qualquer - e uma viagem fantástica para quem ama as palavras. Um trabalho de obsessão e método. Uma obra a ser colocada no altar do deus das pequenas coisas.
Meu clássico.










sábado, 8 de outubro de 2011

30 livros em um mês - dia 9



O livro do dia 9 é daqueles "o mais": é "o livro mais triste que você já leu". E eu, que passei a semana não-escrevendo esse post, pensei na verdade em dois.

O primeiro é um livro de que nem gosto, mas que li porque fazia sucesso lá na casa de tia Zélia e tio Paulo naquelas férias (eu, esponja, lia o que quer que fosse assunto, o que quer que estivessem lendo. Na saudosa casa do Espinheiro, de tantas lembranças, li coisas que só lá mesmo): "Éramos Seis", de Maria José Dupré. É a história de uma família - pai, mãe e quatro filhos -, contada na primeira pessoa por uma das filhas. Acho, sem certeza, que foi tema de novela. Conta a história depois, quando tudo já passou e eles não são mais seis. 

O que me fez, de imediato, lembrar desse, foi a qualidade da tristeza ali relatada: uma tristeza dura, seca. Uma tristeza sem sonhos, sem possibilidade de esperança. Diferente da tristeza quente do desespero, da tristeza funda da angústia: uma tristeza contida e sem graça. Uma tristeza banal e triste, tão triste por isso. Tristeza feia.

O segundo talvez cause espanto, mas é isso mesmo: o segundo é Pollyanna - Eleanor H. Porter. O primeiro livro sem imagens que li. E eu devia ter menos de sete. Os de Monteiro Lobato tinham imagens, poucas mas tinham; Pollyanna, nada. Só a capa, em que o rosto da menina ruiva era apenas esboçado. Foi um passo, foi difícil. Foi uma conquista.

Em Pollyanna, o tão famoso "jogo do contente" é usado por ela pra combater a sempre presente tristeza: jogo ensinado pelo pai missionário (palavra que aprendi ali, como tantas), quando ela chorou por ter recebido, no malote de Natal, em vez da boneca pedida, muletas. Malote de Natal: pobreza. Renata, seis anos, tentando absorver aquilo, um mundo em que não se escolhe presente de Natal -eles vêm no malote, e pode acontecer de virem muletas em vez do esperado presente. E o pai, iniciando a trajetória do jogo: "você tem que ficar contente... por não precisar delas!". Faz sentido. Mas que é difícil, é. É um modo de combater a tristeza. 

Quando o livro começa, Pollyanna já é órfã (outra palavra aprendida): mais tristeza. Vai morar com tia Polly, responsável por metade do seu nome - a outra metade era da outra irmã da mãe, Anna. Tia Polly encarna aquela tristeza de "Éramos seis": seca, dura, sem esperança. E o livro conta o encontro dessas duas tristezas, a da menina órfã e pobre, a da tia amarga e solitária.
Tantas tristezas eu ali aprendi, nesse livro do qual para a lenda ficou somente o "jogo do contente". Mas, no vácuo, o jogo perde o sentido. Só serve quando a tristeza ameaça invadir todos os espaços: como um exercício de sobrevivência. De dizer "você está aí,mas eu sou mais forte". Não é brincadeira. Ou melhor, é brincadeira, e também é muito sério. Como tantas brincadeiras.



quinta-feira, 6 de outubro de 2011

A Solidão do Cavaleiro no Horizonte

Meu pai era um homem que amava livros. Amava sem respeitar: os livros que ele lia ficavam marcados, dobrados, amassados. Porque ele lia em todo canto: na rede quando dava, na cadeira de couro que minha mãe deu a ele, com o boi pra complementar e apoiar os pés, no sofá da sala, mas também no banheiro, na praia cheia de areia, em qualquer mesa de bar, muito em aviões (até hoje encontro marcadores com M.Lins e o n° do assento, em determinados livros). 

Lia e se apaixonava. Quando se apaixonava, a gente sabia: ele se entusiasmava, lia passagens, comprava um monte e saía dando de presente. "A Solidão do Cavaleiro no Horizonte" tem um lugar de destaque nesse panteão. Porque nesse caso, acho que era o livro que ele gostaria de ter escrito. Um livro de autor nordestino, de nome Marcos como ele. Um livro lançado em 79, também conhecido como "o ano 1 da volta": ano prenhe de possibilidades, mas também de receios, de decepções. Ano de balanço. 

"A solidão"... é um livro de balanço. Pelo que me lembro. Porque não lembro muito: li, claro, como não havia de. E gostei. Mas, curiosamente, em vez de personagens e situações, lembro é do clima. Do  tom. Um tom meio amargo. Um tom de "o que foi feito, amigo, de tudo o que a gente sonhou". Um tom que, certamente, combinava com o que meu pai sentia naquele momento: combinava muito. Com o que ele sentia e, na sua reserva natural, dizia pouco. Dizia aos poucos. Dizia com livros, como este.

E, porque os deuses tecem suas tramas e com elas se divertem, muito tempo depois, ficamos amigas, muito amigas mesmo, de uma moça cuja mãe era casada com Marcos Santarrita: o autor do livro que meu pai queria ter escrito. Minha irmã soube primeiro, e imediatamente reconheceu o nome tão popular na nossa casa. Lembro da gente conversando sobre isso na Lagoa, meu pai comovido com esse "encontro", falando do livro. Nunca conheci Marcos Santarrita: ocasionalmente encontrava seu nome em ótimas traduções, eu que sempre vou ver quem traduziu quando a tradução é boa. Tão raro e tão precioso. As dele sempre eram.

Ontem, o mundo dos livros ficou mais pobre. Foi-se Marcos Santarrita, um amante dos livros, um artesão das letras, um contador de histórias. Todo meu carinho a quem o amava. 

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

30 livros em um mês - dia 8

O de hoje é "o livro mais assustador que você já leu". E pra esse não preciso nem pensar - é óbvio.
A cena foi meu aniversário de onze anos, um presente atrasado da minha amiga Françoise: dois livros. Um era "Marie Lumière", lindinho, sobre uma menina (Maria Luz) que ia conhecer o pai e conviver com ele pela primeira vez na vida.
O outro é a pauta aqui: "O caso dos dez negrinhos" (Dix petits nègres), da Agatha Christie. Meu primeiro Agatha Christie. Tão assustador que escondi o livro depois de tê-lo, fascinada e apavoradamente, devorado. E demorei um tempão até pegar meu segundo Agatha Christie - que foi, felizmente, Assassinato no Expresso do Oriente, a partir do qual minha carreira de agathachristeira começou e foi se solidificando ao longo da vida; mas isso é outro assunto.
"O caso dos dez negrinhos" é um livro assustador pela atmosfera. Uma ilha. Dez convidados. Que vão morrendo um a um. Sem que se saiba porque. Uma ilha sem anfitrião. Ilha já é assustador, né. Pelo isolamento. Uma ilha em áreas britânicas ainda tem, possivelmente, falésias de pedras negras e brumas. Nem lembro se essa tinha. Acho que nunca mais li o livro. Eu que leio e releio Agatha Christies como comfort books. Pra me confortar, pra me consolar e me fazer achar que tudo tem jeito. Como outros lêem livros de auto-ajuda, eu leio "Aventura em Bagdad", "O homem do terno marrom", os Miss Marple todos, os de Tommy e Tuppence Beresford. Poirot também, claro: mas sou mais Miss Marple e seu universo de Saint Mary Mead, as fofocas do vilarejo, a "natureza humana" que se reconhece nas pequenas coisas... dos livros de Poirot gosto é do alter-ego da autora, Ariadne Oliver, e seu detetive finlandês por conta do qual vivia recebendo cartas de reclamação dos leitores (e sempre imagino as cartas dos belgas à própria Agatha). 
Nos "dez negrinhos" - que, por reclamações de editoras, já teve vários nomes e não sei mais qual o que está em voga atualmente -, não há personagem principal, não há esperança, não há saída. A atmosfera de angústia só piora ao longo do livro. Não é, definitivamente, um Agatha Christie característico. Só que foi meu primeiro: eu não sabia.

A história se fecha num posfácio explicativo. Pelo menos isso.




domingo, 2 de outubro de 2011

30 livros em um mês - dia 7

"Um livro que você odiou mas teve que ler pra escola?" Acho que não tem. Se eu tive que ler, mesmo forçada, acabei achando algo interessante, algo curioso, algo pelo qual valeu a pena ter lido o livro. Aí substituo por "um livro que eu teria que ler pra escola, mas não li". E esse existe: fiz prova sobre um livro que não li. Tipo um teste: será que dá? Eu era uma aluna que testava limites. O que, acho, é positivo. Não era acomodada nem conformada. E achava as provas sobre livros - nessa época aí - extremamente chatas. 


Deve ter sido na 8a série. No meu primeiro ano de volta ao Brasil (7a série), tive três professores fundamentais: os de geometria e desenho, Marcelo Sá Correa e Claudio Veloso; e o de português, Armando. Armando teve que me aturar, porque eu fazia prova e paraprova: nas beiradas ia um monte de recadinhos, de comentários, de "será que é isso". Ele mandou bem e com ele li dois livros de que gostei, "Cândido Urbano Urubu" do Carlos Eduardo Novaes - esse li bem antes de ter ouvido falar em Fernão Capelo Gaivota, só depois é que fui achar graça - e "A ilha das borboletas azuis", de Carlos de Marigny. Ah, esse... me fez sonhar. Era uma história de triângulo amoroso adola, Janjão que era apaixonado por uma menina cujo nome não lembro, mas que tocava piano, era loirinha e etérea, e Mônica, apaixonada por Janjão, que nem olhava pra ela. Pelo menos no começo.

Eu era Mônica, claro. Toda errada, tudo menos etérea, apaixonada à primeira vista por um menino da minha turma, de olhos de gato e sotaque quase nordestino, que queria ser jornalista (e eu achei tão estranho isso). Esse eu li e adorei: reli um monte, e lembro do pátio da escola, de Mônica que jogava vôlei, de Janjão que se chamava Jânio João e tinha vergonha do nome... nessa época inventei um alfabeto inteiro, pra escrever coisas que minha mãe não poderia ler mesmo se pegasse. Usei durante um tempo: um alfabeto meu, do qual ninguém tinha a senha. Só meu. Eu escrevia e eu mesma lia. 


Só que o assunto aqui é outro: é o  que não li. E fiz prova. Foi "A hora dos ruminantes". José J. Veiga. Não gostei da idéia (já aí aparecia a aversão ao realismo fantástico que me fez ficar com indigestão de "Cem Anos de Solidão"....será?). Não gostei da proposta. E só muito tempo depois li o Ionesco dos rinocerontes. Aí fui deixando pra lá, procrastinando... e no dia da prova, logo antes de entrar, pedi pra alguém me contar a história: assim, resumida. Rapidinho. Como começa? O que acontece? Como acaba? E fui pra sala. Fui bem, acho. Provavelmente algo entre sete e oito. O que certamente deve ter me causado certa decepção: se a prova fosse boa, o professor teria visto. Teria notado. Mas cedo identifiquei que saber escrever, saber escrever direito, era meio caminho andado. Provavelmente mais que meio.

Acho isso ainda: se a gente abolisse esse montão de matérias específicas e focasse os meninos, durante os anos de ensino fundamental, nas instrumentais - português e matemática -, nosso mundo seria outro. Claro: se  a pessoa sabe português, não esse mané que ensinam por aí, de decoreba de coisas que não tem nada a ver com nada, mas português de escrever, de contar história, de contar a mesma história com outro narrador, de resumir pra um terço das palavras, ampliar para o dobro, parafrasear, comentar.... ah, se sabe português assim, mata qualquer charada, resolve qualquer parada. Ou quase. 


E matemática? Linguagem também, né? Com reforço, mais uma vez, não na matemática de decoreba de fórmulas: mas na lindeza da matemática, nos sentidos do infinito (lembro até hoje da minha professora da 2a série explicando que num segmento de reta tinha infinitos pontos, e da viagem que a turma fez sobre isso),  do zero e de como ele mudou a cara das coisas, dos conjuntos e do pertencimento ou não, das interseções, do que está fora... tanta coisa que ajuda a entender, a decodificar, a explicar todo o resto. Tanta coisa que ajuda a investigar por conta própria, que dá autonomia, que possibilita as viagens de exploração de cada um.


Enfim. Voltando. Esse foi o livro que eu não li. E achei chato.