sábado, 12 de maio de 2012

A canção de Marcelo

Marcelo,
já é seu aniversário. E essa é a lembrança mais antiga que eu tenho: papai me levantando, aquele vidrão da maternidade, e eu olhando lá pra dentro, maravilhada com aquele mar de bebês. E - maravilha das maravilhas - a enfermeira, de dentro, mostrando qual era "o meu". Era 12 de maio e eu tinha dois anos menos cinco dias: no meu segundo aniversário, você já tava. Já tava e teve sempre, desde então. Tão precioso numa vida meio sem eira nem beira, tantas casas, tantas mudanças, tantas bagagens de memória: aquele que lembra comigo. Que viveu comigo, olhando junto, estranhando, se encantando. 

(Juju é outra onda, tanta coisa a gente viveu junto também. Mas ela é seis anos e meio mais nova: e isso conta, sobretudo nessa época aí, quando a gente tava crescendo.)

A gente indo pro Recife juntos, nas férias de julho e de verão, desde tão pequenos. A gente em Genebra: o Nescau que você preparava, pra mim e pra você, antes da gente ir pra escola, porque eu tinha mais preguiça de acordar e só levantava no último minuto.
 A gente na escola: Eaux-Vives, Vollandes. Jogando bola de gude no pátio, na "saison des billes". A gente na rua, fantasiados, cantando Cé qué l'ainò na Escalade pra ganhar uns trocados. 

 As  séries na TV  que só a gente lembra: Deux ans de vacances, Sandokan, Starsky e Hutch, Amicalement Vôtre. E tantas outras. 

Os livros todos, os quadrinhos: Tintin, Lucky Luke, Astérix (sobretudo Astérix).

As coisas que só você sabia: de como eu tinha medo, às vezes, de dormir sozinha, e ia pro seu quarto de noite: deitava na cama de baixo e botava a mão em você, quentinho e respirando. E você deixava, e você nunca contou pra mamãe. Eu era mais velha, né. Eu era a mais velha. Não ficava nem bem. Mas você nunca contou.

Você sempre foi mais engraçado, mais falante, mais enturmado: eu era quieta e meio "da sombra". E no entanto a gente era tão parecidos, em tantas coisas que as pessoas não viam mas que a gente sabia. Bastava olhar. 

A volta pro Brasil na época da anistia, nós três primeiro enquanto os pais empacotavam a mudança - e "como é difícil se mudar sem a polícia atrás", dizia Dona Fáfa com aquele jeito dela de fazer graça das horas pesadas. A gente chegando no aeroporto dos Guararapes, a gente mergulhando nos primos e tios do Recife, na casa dos avós. Tanta coisa pra entender, tanta coisa pra ver. Tanta gente pra aprender e pra lembrar. Mas era a gente. A gente que se entendia, que se olhava e se entendia - como sempre tinha sido. 

O Rio depois, com acolhida chez Jo e Claudius, até os pais chegarem. De novo  mudanças, adaptações, estranhezas. Nova casa, nova escola. Amigos antigos dos pais, que a gente tinha que reaprender. 
A acolhida da Aliança Francesa, lugar de proteção pro bando de meninos perdidos no Rio que a gente era: a anistia teve um efeito muito curioso sobre a turma de Nancy I da Aliança Francesa de Botafogo, cuja faixa etária até então devia girar em torno dos 50 anos... (me lembro do M.Pille, diretor da Aliança, dizendo pro Karydakis: "Ça va vous changer de vos vieilles dames!)

... E agora, mais recentemente (já vão fazer oito anos!), o período mais difícil da vida, quando papai ficou doente de repente. Puta que pariu. Como foi duro. E, dentro daquela pauleira que foi aquilo, eu tinha aquela sensação de que a gente era um "ser de três cabeças". Eu, você, Ju. Tudo junto. No último dia, a gente tava lá os dois e viu que não ia dar; depois, no carro, já descendo do Silvestre, eu contei pra você e você contou pra mim que tinha dito pra ele ir. E ele foi.

Tanta tanta história. Nossa história. Que continua até hoje, mesmo que às vezes, por contingências da vida ou confusões do dia-a-dia, a gente se veja menos do que gostaria. O "almoço de irmãos" -  nós três, com Ju também - e a alegria que a gente sempre tem de tar juntos. As risadas. As tristezas também. Que às vezes a gente fala, às vezes a gente cala. Mas tá ali - e a gente sabe, a gente nem precisa pensar nisso - aquela certeza preciosa: cacete, como é bom ter irmão.


E, quando eu fui dizer ao meu filho que ele ia ter um irmão, eu disse isso: é muito bom ter irmão. Você não tem idéia de como é bom. Acho que agora ele já sabe bem...


Viva você, meu irmão. Obrigada por tudo. 




E, por último, pra ficar registrado: a "canção do irmão". Que eu sempre cantei pra você de brincadeira. Mas é verdade. E (claro) você sabe. 





quinta-feira, 3 de maio de 2012

Uns buracos assim

Tem uns buracos que ficam, assim. Tão ali, os buracos. E o tempo passa, e a poeira cobre. E a gente não fala mais nisso, mas eles tão ali. Silenciosos buracos. Escuros buracos. Tão ali os buracos. E a gente nem fala mais nisso. Porque não faz nem mais sentido. Tanto tempo. Os buracos já deveriam estar fechados.

E olha, outro, desavisadamente, poderia até dizer: mas é só isso? É isso que você tá chamando de buracos?
Porque não tô falando das grandes perdas. Não tô falando dos grandes dramas. Esses pertencem a outros.
Os meus são buracos assim: a minha casa que sumiu de um dia pro outro, porque a polícia foi lá e a gente teve que ir embora com a roupa da mala de férias. Eu tinha sete anos, e dentro da minha casa - meus brinquedos, minhas roupas, meus livros - a dor maior foi ter perdido os álbuns. Os álbuns de mim e de Marcelo pequenos. Nossas fotos começam aos sete e aos cinco anos, respectivamente. As de antes disso: ficaram na casa, que foi abandonada tal e qual. Bebê, na nossa casa, só Juliana. Eu e Marcelo nascemos aos sete e aos cinco anos: assim contam as fotos.

Depois tem outro doloroso, o dos livros de Genebra: aqueles que a gente (Marcelo e eu) tinha separado, com tanto cuidado, com tanto carinho, e que não chegaram. Entenderam errado, vieram outros .... e depois da longa espera, do navio que demorou tanto, do século que foi o desembaraço da bagagem em Santos, os nossos livros não vieram. Vieram poucos, vieram errado. A gente tinha separado tudo e não adiantou nada. 

Tem meu poncho: meu poncho que eu amava e que minha mãe achou por bem dar a Isabel, minha melhor amiga - afinal, no Rio, pra que eu ia precisar do poncho? Não entendeu ela que o poncho era um urso de pelúcia, era o familiar, o conhecido diante de tanta mudança. Ficou meu poncho em Genebra. Eu fiquei sem urso de pelúcia. E afinal, com quase treze anos, não ficava nem bem.

Tem um buraco maior - o dos silêncios. O do silêncio da ida, de quando a gente saiu do Brasil: porque a gente não sabia, a gente era criança - e pras crianças tem tanto que não se conta. A gente foi descobrindo aos poucos. Que tia Sônia tava presa. Que papai tinha fugido pelo Paraguai. Que a gente não tinha idéia de por quanto tempo ia ficar fora. Que a gente não tinha saído porque queria. Tudo isso aos poucos, nada disso muito bem contado. A cada descoberta, um susto. E, depois do susto, a recomendação: não era pra contar. Não contar a ninguém. Na escola, não contar nada: dizer que a gente tava ali por conta do trabalho do meu pai. E pronto. Aprender a mentir todo dia: uma dura aprendizagem, da qual a gente não se desfaz com facilidade. 

E o silêncio da volta. A volta, um pouco antes da anistia maior. Papai, tio Sylvio foram anistiados antes, como já acontecia nessa época. Anistiados no final da ditadura. E a gente voltou sem saber direito. A gente voltou e eu não me entendia mais com nada. Parecia que aqui o tempo passava diferente: outras modas, outras roupas. Outra história. A gente falando estranho e tentando se encaixar. A gente, os filhos dos que tinham voltado. A gente que não tinha escolhido ir e que não escolheu voltar. Tudo tão difícil. E o mais difícil: à gente, a mim e a Marcelo, foi pedido que a gente mentisse de novo: excesso de cautela, hábito antigo de viver clandestino. Ainda era ditadura. Podia ser. Nada era certo. Enfim. Não era pra dizer. Na volta, de novo, a gente dizia que tinha estado fora "por conta do trabalho do meu pai". Cinco anos fora, tanto pra recuperar, e a gente não podia dizer. Cacete, como foi foda não dizer. Não poder contar essa história. Nossa história, que era tudo que a gente tinha. E que, tanto tempo depois, ainda dói. Talvez mais ainda por conta do silêncio.

Tem os grandes dramas. A grande história.
A nossa é apenas a pequena história dentro da grande história.
Uma pequena história de buracos mal tapados.