Tem uns buracos que ficam, assim. Tão ali, os buracos. E o tempo passa, e a poeira cobre. E a gente não fala mais nisso, mas eles tão ali. Silenciosos buracos. Escuros buracos. Tão ali os buracos. E a gente nem fala mais nisso. Porque não faz nem mais sentido. Tanto tempo. Os buracos já deveriam estar fechados.
E olha, outro, desavisadamente, poderia até dizer: mas é só isso? É isso que você tá chamando de buracos?
Porque não tô falando das grandes perdas. Não tô falando dos grandes dramas. Esses pertencem a outros.
Os meus são buracos assim: a minha casa que sumiu de um dia pro outro, porque a polícia foi lá e a gente teve que ir embora com a roupa da mala de férias. Eu tinha sete anos, e dentro da minha casa - meus brinquedos, minhas roupas, meus livros - a dor maior foi ter perdido os álbuns. Os álbuns de mim e de Marcelo pequenos. Nossas fotos começam aos sete e aos cinco anos, respectivamente. As de antes disso: ficaram na casa, que foi abandonada tal e qual. Bebê, na nossa casa, só Juliana. Eu e Marcelo nascemos aos sete e aos cinco anos: assim contam as fotos.
Depois tem outro doloroso, o dos livros de Genebra: aqueles que a gente (Marcelo e eu) tinha separado, com tanto cuidado, com tanto carinho, e que não chegaram. Entenderam errado, vieram outros .... e depois da longa espera, do navio que demorou tanto, do século que foi o desembaraço da bagagem em Santos, os nossos livros não vieram. Vieram poucos, vieram errado. A gente tinha separado tudo e não adiantou nada.
Tem meu poncho: meu poncho que eu amava e que minha mãe achou por bem dar a Isabel, minha melhor amiga - afinal, no Rio, pra que eu ia precisar do poncho? Não entendeu ela que o poncho era um urso de pelúcia, era o familiar, o conhecido diante de tanta mudança. Ficou meu poncho em Genebra. Eu fiquei sem urso de pelúcia. E afinal, com quase treze anos, não ficava nem bem.
Tem um buraco maior - o dos silêncios. O do silêncio da ida, de quando a gente saiu do Brasil: porque a gente não sabia, a gente era criança - e pras crianças tem tanto que não se conta. A gente foi descobrindo aos poucos. Que tia Sônia tava presa. Que papai tinha fugido pelo Paraguai. Que a gente não tinha idéia de por quanto tempo ia ficar fora. Que a gente não tinha saído porque queria. Tudo isso aos poucos, nada disso muito bem contado. A cada descoberta, um susto. E, depois do susto, a recomendação: não era pra contar. Não contar a ninguém. Na escola, não contar nada: dizer que a gente tava ali por conta do trabalho do meu pai. E pronto. Aprender a mentir todo dia: uma dura aprendizagem, da qual a gente não se desfaz com facilidade.
E o silêncio da volta. A volta, um pouco antes da anistia maior. Papai, tio Sylvio foram anistiados antes, como já acontecia nessa época. Anistiados no final da ditadura. E a gente voltou sem saber direito. A gente voltou e eu não me entendia mais com nada. Parecia que aqui o tempo passava diferente: outras modas, outras roupas. Outra história. A gente falando estranho e tentando se encaixar. A gente, os filhos dos que tinham voltado. A gente que não tinha escolhido ir e que não escolheu voltar. Tudo tão difícil. E o mais difícil: à gente, a mim e a Marcelo, foi pedido que a gente mentisse de novo: excesso de cautela, hábito antigo de viver clandestino. Ainda era ditadura. Podia ser. Nada era certo. Enfim. Não era pra dizer. Na volta, de novo, a gente dizia que tinha estado fora "por conta do trabalho do meu pai". Cinco anos fora, tanto pra recuperar, e a gente não podia dizer. Cacete, como foi foda não dizer. Não poder contar essa história. Nossa história, que era tudo que a gente tinha. E que, tanto tempo depois, ainda dói. Talvez mais ainda por conta do silêncio.
Tem os grandes dramas. A grande história.
A nossa é apenas a pequena história dentro da grande história.
Uma pequena história de buracos mal tapados.
Que belo texto...Escrever lindamente sobre buracos já não é nada fácil, ainda mais quando são de uma época que não vai deixar de existir. Pela abertura dos arquivos...Não podemos 'engolir' esse buraco histórico!
ResponderExcluirQue lindo, Renata...
ResponderExcluirComo é incrível, fazer da dor e dos vazios um texto que deve ser lembrado e divulgado, para que nunca mais aconteça.
Para que ninguém tenha que ir sem escolher, nem mentir sem querer, nem ter que tapar buracos que não cavou.
Linda, vc.
Tereza, Rê: muito bom que leiam e gostem. Vocês devem imaginar, não é fácil escrever sobre. Até porque tem a "grande história", né. E às vezes a gente fica achando que a pequena história não merece ser contada. Aí é tão legal receber retornos como esses de vocês. Obrigada.
ResponderExcluirTeu texto foi a gota d'água, o espinho que faltou gravar no meu peito desde o mais recente e horripilante capítulo da tal "grande história"... A minha revolta e dor é tanta que nem sei por onde começar a desabafar, e eu nem fui atingida diretamente, nem tenho história para contar, grande ou pequena. Mas preciso desabafar, e vou. Assim que conseguir enxergar menos anuviado... :'(
ResponderExcluirOs livros de História não contam histórias, e são histórias que nos esmurram o estômago e nos transportam no tempo.
ResponderExcluirA internet proporciona o acesso às histórias que a produção literária não quer contar, como a sua.
Sua história me lembrou o filme "A culpa é do Fidel".
olha eu quero protestar... eu aqui de mimimi e vocês sofrendo de verdade, putz.. isso é desleal.
ResponderExcluirTô aqui ouvindo Guinga e comendo leite condensado e nego me produz obra de arte belissima sobre dor, daquelas reais. vou denunciar pra OEA.
Ni, é isso. A gente vai desabafando como dá, quando dá. Escrever sempre ajuda. Eu acho.
ResponderExcluirGuilherme, você nem imagina eu no cinema vendo "A culpa é de Fidel"... lágrimas do começo ao fim. Eu era aquela menininha.
Gilson, mandaí um leite condensado pela rede, vai. :)
Re,
ResponderExcluirSenti um pouco desse peso em cada vez que citava a viagem para Suíça, parecia algo como uma aventura interessante e cultural, mas ao mesmo tempo repleta de dores e cicatrizes. Seu texto deixou isso mais claro pra mim, certamente teria vivido algo próximo naquela época.
Grande beijo!
Engraçado, Dandi, é que eu sempre acho que todo mundo já sabe. Que eu já expliquei. E na verdade tô sempre explicando... beijo!
ResponderExcluirQue triste, Re. Que lindo seu texto, mas que triste história.
ResponderExcluirBeijos
Rita
Ah, Rita. Tem triste, sim. Como essa parte que contei aí. Mas tem tantas outras partes. Como tudo de intenso que faz a gente ser o que a gente é. Beijos! :)
ResponderExcluirRenata: te conheço de vista através de um personagem dessa história: Marcelo, amigo, companheiro. O cara, no caso o seu irmão, doce e gentil figura, mal parece ter vivido tantos perrengues. Beijos na dona Fátima. Parabéns pelo lindo texto. Abraços, Paulo Marcelo
ResponderExcluirPenso eu, cá com minha história pequenina e de buracos tão pequenos que quase nem se vê, que a grande História só tem sentido e valor ao prestar conta aos pequeninos buracos, às pequenas narrativas, ao concreto.
ResponderExcluirLindas letras que sabe fazem sal no coração e nos olhos.
Fotos perdidas, distancias provocadas, livros extraviados, silêncios exigidos, sonhos roubados.Malditos!
ResponderExcluirLindo texto Renata.
que dolorido! lembro da minha mãe e uma amiga querida dela contando que se encontraram num ônibus, no interior do país ( essa amiga voltou um pouco antes da anistia e se refugiou no interior) e que não se falaram por medo. a amiga com os filhos dela, minha mãe comigo e minah irmã, se olharam e choraram durante a viagem, mas não se falaram. doeu aqui. bj.
ResponderExcluirAh, Paulo Marcelo, eu também sou fã desse personagem aí, tenha certeza. Grande sujeito esse irmão que eu tenho.
ResponderExcluirLu, Suzana queridas: tão bom ter vocês passando por aqui e comentando, que dá até vontade de escrever mais...
Bete, tem tanta história pra ser contada, né. Imagino a sua mãe e a amiga, que duro que não deve ter sido isso...
Cara, belíssimo! Compartilhei djá!
ResponderExcluirLindo texto, Renata. Muito triste essa história. Esses buracos não podem ficar impunes.
ResponderExcluirvamos lá, Carol. :)
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