quinta-feira, 3 de maio de 2012

Uns buracos assim

Tem uns buracos que ficam, assim. Tão ali, os buracos. E o tempo passa, e a poeira cobre. E a gente não fala mais nisso, mas eles tão ali. Silenciosos buracos. Escuros buracos. Tão ali os buracos. E a gente nem fala mais nisso. Porque não faz nem mais sentido. Tanto tempo. Os buracos já deveriam estar fechados.

E olha, outro, desavisadamente, poderia até dizer: mas é só isso? É isso que você tá chamando de buracos?
Porque não tô falando das grandes perdas. Não tô falando dos grandes dramas. Esses pertencem a outros.
Os meus são buracos assim: a minha casa que sumiu de um dia pro outro, porque a polícia foi lá e a gente teve que ir embora com a roupa da mala de férias. Eu tinha sete anos, e dentro da minha casa - meus brinquedos, minhas roupas, meus livros - a dor maior foi ter perdido os álbuns. Os álbuns de mim e de Marcelo pequenos. Nossas fotos começam aos sete e aos cinco anos, respectivamente. As de antes disso: ficaram na casa, que foi abandonada tal e qual. Bebê, na nossa casa, só Juliana. Eu e Marcelo nascemos aos sete e aos cinco anos: assim contam as fotos.

Depois tem outro doloroso, o dos livros de Genebra: aqueles que a gente (Marcelo e eu) tinha separado, com tanto cuidado, com tanto carinho, e que não chegaram. Entenderam errado, vieram outros .... e depois da longa espera, do navio que demorou tanto, do século que foi o desembaraço da bagagem em Santos, os nossos livros não vieram. Vieram poucos, vieram errado. A gente tinha separado tudo e não adiantou nada. 

Tem meu poncho: meu poncho que eu amava e que minha mãe achou por bem dar a Isabel, minha melhor amiga - afinal, no Rio, pra que eu ia precisar do poncho? Não entendeu ela que o poncho era um urso de pelúcia, era o familiar, o conhecido diante de tanta mudança. Ficou meu poncho em Genebra. Eu fiquei sem urso de pelúcia. E afinal, com quase treze anos, não ficava nem bem.

Tem um buraco maior - o dos silêncios. O do silêncio da ida, de quando a gente saiu do Brasil: porque a gente não sabia, a gente era criança - e pras crianças tem tanto que não se conta. A gente foi descobrindo aos poucos. Que tia Sônia tava presa. Que papai tinha fugido pelo Paraguai. Que a gente não tinha idéia de por quanto tempo ia ficar fora. Que a gente não tinha saído porque queria. Tudo isso aos poucos, nada disso muito bem contado. A cada descoberta, um susto. E, depois do susto, a recomendação: não era pra contar. Não contar a ninguém. Na escola, não contar nada: dizer que a gente tava ali por conta do trabalho do meu pai. E pronto. Aprender a mentir todo dia: uma dura aprendizagem, da qual a gente não se desfaz com facilidade. 

E o silêncio da volta. A volta, um pouco antes da anistia maior. Papai, tio Sylvio foram anistiados antes, como já acontecia nessa época. Anistiados no final da ditadura. E a gente voltou sem saber direito. A gente voltou e eu não me entendia mais com nada. Parecia que aqui o tempo passava diferente: outras modas, outras roupas. Outra história. A gente falando estranho e tentando se encaixar. A gente, os filhos dos que tinham voltado. A gente que não tinha escolhido ir e que não escolheu voltar. Tudo tão difícil. E o mais difícil: à gente, a mim e a Marcelo, foi pedido que a gente mentisse de novo: excesso de cautela, hábito antigo de viver clandestino. Ainda era ditadura. Podia ser. Nada era certo. Enfim. Não era pra dizer. Na volta, de novo, a gente dizia que tinha estado fora "por conta do trabalho do meu pai". Cinco anos fora, tanto pra recuperar, e a gente não podia dizer. Cacete, como foi foda não dizer. Não poder contar essa história. Nossa história, que era tudo que a gente tinha. E que, tanto tempo depois, ainda dói. Talvez mais ainda por conta do silêncio.

Tem os grandes dramas. A grande história.
A nossa é apenas a pequena história dentro da grande história.
Uma pequena história de buracos mal tapados. 




19 comentários:

  1. Que belo texto...Escrever lindamente sobre buracos já não é nada fácil, ainda mais quando são de uma época que não vai deixar de existir. Pela abertura dos arquivos...Não podemos 'engolir' esse buraco histórico!

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  2. Que lindo, Renata...
    Como é incrível, fazer da dor e dos vazios um texto que deve ser lembrado e divulgado, para que nunca mais aconteça.
    Para que ninguém tenha que ir sem escolher, nem mentir sem querer, nem ter que tapar buracos que não cavou.
    Linda, vc.

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  3. Tereza, Rê: muito bom que leiam e gostem. Vocês devem imaginar, não é fácil escrever sobre. Até porque tem a "grande história", né. E às vezes a gente fica achando que a pequena história não merece ser contada. Aí é tão legal receber retornos como esses de vocês. Obrigada.

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  4. Teu texto foi a gota d'água, o espinho que faltou gravar no meu peito desde o mais recente e horripilante capítulo da tal "grande história"... A minha revolta e dor é tanta que nem sei por onde começar a desabafar, e eu nem fui atingida diretamente, nem tenho história para contar, grande ou pequena. Mas preciso desabafar, e vou. Assim que conseguir enxergar menos anuviado... :'(

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  5. Os livros de História não contam histórias, e são histórias que nos esmurram o estômago e nos transportam no tempo.
    A internet proporciona o acesso às histórias que a produção literária não quer contar, como a sua.
    Sua história me lembrou o filme "A culpa é do Fidel".

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  6. olha eu quero protestar... eu aqui de mimimi e vocês sofrendo de verdade, putz.. isso é desleal.

    Tô aqui ouvindo Guinga e comendo leite condensado e nego me produz obra de arte belissima sobre dor, daquelas reais. vou denunciar pra OEA.

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  7. Ni, é isso. A gente vai desabafando como dá, quando dá. Escrever sempre ajuda. Eu acho.
    Guilherme, você nem imagina eu no cinema vendo "A culpa é de Fidel"... lágrimas do começo ao fim. Eu era aquela menininha.
    Gilson, mandaí um leite condensado pela rede, vai. :)

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  8. Re,

    Senti um pouco desse peso em cada vez que citava a viagem para Suíça, parecia algo como uma aventura interessante e cultural, mas ao mesmo tempo repleta de dores e cicatrizes. Seu texto deixou isso mais claro pra mim, certamente teria vivido algo próximo naquela época.

    Grande beijo!

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  9. Engraçado, Dandi, é que eu sempre acho que todo mundo já sabe. Que eu já expliquei. E na verdade tô sempre explicando... beijo!

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  10. Que triste, Re. Que lindo seu texto, mas que triste história.

    Beijos
    Rita

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  11. Ah, Rita. Tem triste, sim. Como essa parte que contei aí. Mas tem tantas outras partes. Como tudo de intenso que faz a gente ser o que a gente é. Beijos! :)

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  12. Renata: te conheço de vista através de um personagem dessa história: Marcelo, amigo, companheiro. O cara, no caso o seu irmão, doce e gentil figura, mal parece ter vivido tantos perrengues. Beijos na dona Fátima. Parabéns pelo lindo texto. Abraços, Paulo Marcelo

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  13. Penso eu, cá com minha história pequenina e de buracos tão pequenos que quase nem se vê, que a grande História só tem sentido e valor ao prestar conta aos pequeninos buracos, às pequenas narrativas, ao concreto.

    Lindas letras que sabe fazem sal no coração e nos olhos.

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  14. Fotos perdidas, distancias provocadas, livros extraviados, silêncios exigidos, sonhos roubados.Malditos!
    Lindo texto Renata.

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  15. que dolorido! lembro da minha mãe e uma amiga querida dela contando que se encontraram num ônibus, no interior do país ( essa amiga voltou um pouco antes da anistia e se refugiou no interior) e que não se falaram por medo. a amiga com os filhos dela, minha mãe comigo e minah irmã, se olharam e choraram durante a viagem, mas não se falaram. doeu aqui. bj.

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  16. Ah, Paulo Marcelo, eu também sou fã desse personagem aí, tenha certeza. Grande sujeito esse irmão que eu tenho.
    Lu, Suzana queridas: tão bom ter vocês passando por aqui e comentando, que dá até vontade de escrever mais...
    Bete, tem tanta história pra ser contada, né. Imagino a sua mãe e a amiga, que duro que não deve ter sido isso...

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  17. Cara, belíssimo! Compartilhei djá!

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  18. Lindo texto, Renata. Muito triste essa história. Esses buracos não podem ficar impunes.

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