Ando sem escrever. Muitos textos não-escritos: todos na cabeça. Alguns rascunhados. Mas nenhum pronto ainda.
Pra não deixar o mato crescer demais, vai aqui um antigo. Que é também um rascunho. Quem sabe.
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Queria contar esta história como uma história de medo.
Medo e solidão, que sempre me acompanharam e talvez me acompanhem até hoje.
Medo da ausência. Medo de portas fechadas.
Medo de dormir com a luz apagada. Solidão: pela estranheza, pela diferença,
pela falta de vínculos com a realidade dos outros.
A necessidade de contar esta
história sempre existiu, mas só agora, a partir deste nome, consigo encontrar o
fio condutor: os filhos da tempestade. Aparentemente iguais a todo mundo, e que
no entanto guardam marcas diversas de um tempo em que a vida virou de cabeça
pra baixo; foram arrastados pela chuva e tiveram que se manter à tona.
A história, na sua origem, trata
de mim: gerada na Argélia, nascida em Sampa, crescendo um pouco no Rio, um
pouco em Genebra, filha de pais pernambucanos - não há como estranhar a falta
de raízes e a urgência de me sentir “pertencente a” alguma coisa, qualquer
coisa, um grupo de igreja, uma turma de colégio ou de faculdade, a família de
Recife... algo que me desse uma identidade coletiva e me fizesse menos sozinha.
Minha vida sempre se compôs de
definições e redefinições, como se fosse possível a qualquer hora “desmanchar e
fazer de novo”. Usar uma borracha e retraçar caminhos partindo do zero.
Mudanças de escola, de amigos, de bairro, de cidade, de país. Pra recomeçar
tudo a cada vez.
Esta realidade que é a minha não
foi - na origem - construída por mim. Esta diferença que determinou a qualidade
do meu olhar sobre o mundo me foi imposta pelas opções dos meus pais.
E aqui é que surge o verdadeiro
tema deste texto: a não-escolha. Desde a “Abertura”, muito já se escreveu sobre
os rumos tomados por aqueles que escolheram. Pra mim, falta ainda falar dos
outros: os que foram levados, os filhos da tempestade - que até hoje lutam para
encontrar sua identidade, num mundo em que são sempre, em certa medida,
estrangeiros.
A primeira dificuldade, creio, é
mostrar que há aí uma história a ser contada. História de não-sujeitos da ação.
História de objetos diretos ou indiretos, de complementos cuja função era
seguir... e segurar a onda. Porque naquele momento os problemas fundamentais
eram outros, maiores, que não passavam pela gente. Organização, estratégias,
separações, rachas, perdas e danos, esperança... e a gente acompanhando,
ouvindo, olhando, crescendo dentro da tempestade. A gente se juntando na
diferença: os excluídos. A gente se sentindo tão pequenos diante daqueles
heróis que eram nossos pais. Os que fizeram. Os que tentaram. Os que
escolheram. Os que sofreram “a dor e a delícia de ser o que e(ram)”.
E isso é outra questão que se coloca como fundamental, a
meu ver, para os “filhos da tempestade”, sobretudo numa análise a posteriori:
como sobreviver a esses heróis? como corresponder às expectativas -deles e,
sobretudo, nossas? De que maneira estar à altura e não frustrar o que
acreditávamos que eles esperavam de
nós?... tantas perguntas, que definem escolhas às vezes insensatas, que
constroem uma tensão maior do que a habitual entre o que se quer e o que se
deve – a si mesmo, aos pais – , tornando a busca de identidade própria da
adolescência um sofrimento tão maior do que o inevitável, e a vida adulta na
“democracia” às vezes um pouco pálida diante do que sonhamos e vimos acontecer.
Muito bom seu texto Renata, um "rascunho" e tanto! Confesso que vivi com isso, entre São Paulo e Rio, entre casas de tias, separações de irmãos... Ainda pequena, me restava brincar com o que podia. Tudo perdeu a graça infantil quando a história foi se revelando em meus olhos e peito. Sou uma dessas filhas da tempestade, que ainda convive com a história da qual não fui sujeito, como disse; mas indiretamente me sinto responsável em fazer algo que corresponda às mudanças que os olhos e a história do meu pai, gostariam. Te parabenizo pelas linhas tão profundamente verdadeiras. Abraços Renata!--
ResponderExcluirQue legal seu comentário, Rosa! Essa é minha sensação, que tem tanta história ainda a ser contada. Vamos contando, de pouquinho, né? Beijo!
Excluirsensível e bonito seu texto, Renata.
ResponderExcluirE, recebendo a gente, tanto na ida como na volta, Jo e Claudius. :)O apê da XXXI Décembre era na frente do deles; o daqui, na General Glicério, foram eles q alugaram p meus pais. De novo, na frente.
ResponderExcluire que te fez menos sozinha, certamente. beijo, querida.
ResponderExcluirLivia Garcia-Roza
certamente. Mas "original" demais... beijos, Livia!
ExcluirEu já li esses posts algumas vezes e sempre tenho vontade de comentar, mas não consigo decidir exatamente o quê. Porque tem tanta, tanta coisa nele. Informação, sentimento e um monte de possibilidades para o pensamento. Fico aqui matutando as escolhas. As impossíveis.
ResponderExcluir(ps. eu acho que partilhar esse texto de dois em dois meses faz bem pra saúde pública)
:) que lindo...!
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