Ia ser aniversário da menininha. Aniversário de três anos. Por isso, a mãe - isso não era comum - a levou numa loja de "brinquedos", entre aspas porque brinquedo, pra menininha, era boneca. Sinônimos. Bonecas era o que ela mais gostava de ter no mundo. Não brincava de casinha: apenas "tinha" as bonecas. Olhava pra elas, botava-as no colo. Ninava. Eram suas pequenas. Suas. Ela amava bonecas. E a mãe já sabia: por isso, quando disse "pode escolher o que quiser", sabia que ia ser uma boneca. A menininha olhou e olhou, e escolheu: um bebê. Um bebê lindo e gordinho, com mamadeira. Seu bebê. Era aquela que ela queria. Não a mais cara, não a mais chique: aquele bebê, pra acarinhar, pra transbordar de abraços e beijinhos sem ter fim. A mãe tinha um bebê, afinal: um bebê que também era "seu", e que fazia aniversário (de um ano) tão perto dela que a festa seria junta. Por muito tempo seria junta, e aquela seria a primeira.
A mãe olhou e perguntou "é essa mesma que você quer, filha?" e a menininha tinha certeza, era aquela. O bebê negro. Seu bebê pretinho. Ela, branca, seria "mãe" da boneca negra.
Sem nenhuma dúvida. Sem nenhuma questão. O bebê pretinho era a boneca mais bonita da loja: pelo menos pra ela.
A menininha era eu - e, se não tenho recordação dessa história que minha mãe gosta de contar, me lembro muito bem da boneca, do meu bebê pretinho. Tem uma foto desse aniversário numa moldura na casa da minha mãe: meu pai, meu bebê-irmão, eu de cabelo curtinho, com a boneca no colo. Dando a mamadeira.
E por que foi essa a boneca escolhida, é claro que não tenho idéia. Eu preferi essa, provavelmente por que era diferente de todas, certamente porque era um bebê... e porque tinha. Porque estava à venda ali, naquela loja, essa boneca exatinho. Eu podia querê-la: ela estava lá. Tinha.
Parece besteira, parece pequeno, parece... e no entanto. Tantas crianças não podem. Tá melhorando, parece - mas tantas queriam poder escolher a boneca pretinha. E não tem na loja. Só loiras, só de cabelo liso, só de olhos azuis. Parecidas com outras crianças: não com elas. Quem já brincou de boneca - e quem dera mais meninos tivessem brincado - sabe como esse brincar é grave. Intenso. Teatro é vida. Brincadeira de criança é exercício. Prática de vida, de modelos. Como fazer se não tem boneca pra você? Se as lojas estão cheias de bebês de bochechas gordas e rosas, de cabelos cor de palha, de olhos azuis "da cor do céu" como os da Menina Maribel? Desde cedo, insidiosamente, começa: se não tem boneca pra você, deve ser porque seu cabelo é "ruim", seu olho, sua pele... seu nariz não é fino... mesmo que você seja a Camila Pitanga, a Taís Araujo, o Lázaro Ramos, o Paulinho da Viola. Modelos. Imagens. Identidade.
Pequenas coisas. Gente pequena. E uma dor que, por não ser minha, eu nem posso conhecer de verdade. Só intuir.
Agradeço a Camila Pavanelli, Fal Azevedo e Luciana Nepomuceno por terem acolhido minhas questões quando da produção desse texto. As confusões que permanecem são minhas, só minhas.
Esse texto faz parte da Blogagem Coletiva Mulher Negra 2012 . Para ver os outros textos da blogagem, vá lá!
Eu tinha!!! Ganhei no aniversário de cinco anos, e tenho foto!! Ah, vou procurar. Só pra ver, ver que eu tinha. E eu gostava muito também, apesar de bonecas nunca terem sido assim a paixão da minha vida. Mas, né. Tinha.
ResponderExcluirLindo, querida, lindo texto, muito muito muito pertinente.
Bj
Rita
eu só deixei de querer bonecas quando já entrava na adolescência... minha madrinha me deu "a última". Mas vê minha foto de capa no FB: essas são minhas, compradas já adulta na UN Habitat aqui no Rio...
ExcluirEu, negra, nunca tive uma boneca negra. Apenas loiras de cabelos compridos e muito magras, nem preciso citar a marca né. Não tinha pra vender e ainda não havia essa preocupação na minha família.
ResponderExcluirObrigada por compartilhar esse depoimento na #BCMulherNegra!
Charô, a menina que continua morando em mim fica com vontade de chorar quando lê isso. Juro. Aperta o coração. E sim, quando você era criança não devia ter mesmo. Quando eu era, era difícil: eu não conhecia mais ninguém que tinha. Em compensação, minha sobrinha Maria, que ganhou seu estoque de bonecas antes mesmo de nascer, demorou pra ter uma branca... meu pai era consultor em Angola e Moçambique, trouxe umas tão lindas pra ela...
ExcluirAdorei, Rê - certeza de que a boneca encontrou uma mãe excepcional em você :*
ResponderExcluirsó vi agora o comentário, Cam... :-) Beijos beijos!
ExcluirEu nunca fui das bonecas, lembro com precisão os que foram importantes pra mim: o bebê. Paulinho era o nome dele. Negro, veja só. Ele usava um pijama de flanela e dormia comigo. Ficou tão velhinho que ficou careca. Depois, cresci e já era menina-queria-ser-moça com uns 7, 8 anos e tinha a Gilda. Era uma boneca grandona, loura, olhos azuis, com as bochechas moles que eu apertava e ela ficava fazendo biquinho, era tipo uma amiguinha genérica. E eu contava tudo pra ela dos meus paqueras da rua (que eram três). E eu tinha uma boneca chinesa. Tipo gueixa, acho. Claro que era um enfeite de porcelana, mas eu me encantei e quis e como eu não era muito de querer coisas, minha mãe me deu. E acho que foi a única boneca com a qual brinquei de verdade.
ResponderExcluirBom, o post não era pra isso, mas seu jeito de enredar pensar e sentir faz surgir reminiscências. Concordo com você, vai mudando devagar. Minhas sobrinhas de um ano e pouco tem bem mais que uma boneca negra. E tem livros infantis protagonizados por outras crianças negras. Mas as temáticas ainda são as de aceitação da diferença e tal e tal. Não tem (não conheço) um que seja sobre qualquer coisa, feijões mágicos, um país das maravilhas a desvendas e o protagonista seja negro por ser ele, assim, normal.
Amei o post, cê sabe.
eu tinha uma coleção, Lu. E meu pai que era viajante e generoso trazia as mais variadas: eu tinha uma esquimó que amava (com roupa igualzinha às nativas), tinha uma q era um dos filhos do rei de "Anna e o Rei", uma espanhola dançando flamenco com pente segurando o cabelo... eu realmente amava isso aí. E minhas bonecas eram da cor das crianças do mundo... sorte a minha.
ExcluirMas o bebê fui eu que escolhi. :)
Putz, Anna e o Rei. Pronto, cabou o jogo.
Excluir:-)
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