quarta-feira, 5 de março de 2014

A greve dos garis e a nossa zelite




Os garis. No carnaval. Tão educativo isso. Os garis pararam no carnaval. Já tinham ameaçado parar no Ano Novo, outro ponto delicado em que se nota mais do que normalmente o quanto eles são necessários. Mas não, no dia 1° as ruas estavam limpas, as praias estavam penteadas e com a areia tinindo, esperando turistas e locais que não têm que trabalhar no sol a pino do dia 1°.
E parece que os garis, esses que trabalharam duro no dia 1° para que os frequentadores das praias e das calçadas cariocas pudessem se espalhar sem medo, ficaram até o meio da tarde sem o espartano lanche e suco a que têm direito.
Não saiu uma linha nos jornais sobre isso. Viva as redes sociais.
Os garis pararam agora, no carnaval, numa jogada de mestre. O carnaval é, de fato, o momento de maior visibilidade para essa profissão invisível. Lembro do texto do menino da USP que, para fazer pesquisa de campo do seu trabalho sobre invisibilidade, foi trabalhar na limpeza da universidade. Pois bem. Nem seus colegas o reconheciam. Ninguém falava com ele. Não o reconheciam porque não o viam. O gari como árvore: faz parte da paisagem. Em silêncio, trabalhando de cabeça abaixada. Que faça seu serviço, que não atrapalhe quem estuda. Quem faz coisas sérias. Quem "faz por merecer".
"Ah, não estudou!".
Que lindo o país da meritocracia. Mais que isso: que lindo o país que prescinde de garis. Porque, né, claro. Os outros países, aqueles lá do primeiro mundo - assim, beeem primeiro mundo, tipo a Escandinávia ... então, esses países: não têm garis, né? Afinal, lá todo mundo estudou... ah, tem? Como é isso então? Sim, entendi. Os garis são, tipo assim, imprescindíveis. Fundamentais. Essenciais.
Estão na base da nossa sociedade de consumo desenfreado. Da nossa sociedade produtora de lixo.
Os garis. Negros garis. Loiros médicos "ricos e cultos", que se insurgiram contra os negros médicos cubanos. Em Cuba, como em todo lugar, tem garis. Negros, possivelmente. Mas também tem médicos negros em quantidade: aí a diferença.



Trabalho insalubre. Trabalho pesado.
Trabalho que necessitaria de muito mais proteção do que eles têm, por conta da exposição a doenças. Por conta do contato direto com o lixo dos outros. O lixo que eu, que você, que todo mundo produz em quantidade. Feio, fétido. O lixo que a gente não quer ver, do qual a gente não quer saber. Pois é. Quem dá conta dele são os garis.

Mas o moço branco que estudou em boas universidades e paga de liberal (mas, descubro, é um reaça de quatro costados) acha errado pagar mais aos garis. Que afinal não estudaram. Porque, diz o moço, se pagarem mais, outras pessoas vão fazer o concurso e vão desempregar os que realmente precisam desse emprego.
Ah, tá. Porque se o salário de gari fosse, vamos dizer, não os R$1.200 que eles estão pleiteando, mas ... digamos... R$6.000 reais, que já é um salário bem razoável... eu vou correr lá pra fazer concurso pra gari? Ele vai? Meu vizinho?
Ah, não? Pois é, amigo, não é só o salário... o trabalho é punk, é pesado, é desagradável, é sujo, é insalubre. É essencial. Justamente por isso é que quem o faz merece dignidade. Merece ser tratado com respeito. Merece um salário que lhe permita alimentar sua família. Comprar remédios. Ter um mínimo de tranquilidade. Ter, quem sabe - oh, transgressão das transgressões - momentos de lazer.
Imagina. O gari na praia, relaxando. O gari viajando de férias. O gari vivendo a vida que não é só trabalho com lixo. Que ousado. Que revolucionário.
Só que não.
Não é nem revolucionário. Nem ousado. Nem "de esquerda". Isso pode ser a vida de um gari na sociedade capitalista. Numa sociedade capitalista um pouco menos selvagem do que a nossa. Um pouco menos escravocrata. Um pouco menos elitista. Um pouco menos racista.
Pode ser, e certamente é.
Mas aqui não.



P.S. Recomendação de filme: "Segredos e Mentiras".
Recomendação de texto: "Garis: um estudo de psicologia sobre invisibilidade pública"

19 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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    1. Andrés, tá aí "removido pelo autor". Eu não cortei comentário nenhum. Não sei do que cê tá falando. Nem modero comentários, nesse momento. Só vejo depois de publicados.

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    2. Eu sei... rs... Por isso que eu exclui... Tinha escrito um texto e acho que deu pau quando publiquei... A impressão que tive é que estava aguardando aprovação... Quando publiquei o segundo é que vi que o processo "dando certo" era completamente diferente, mas aí tinha postado, por isso exclui... :p Desculpe! hehehehhe

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    3. MAS, já que reiniciamos isso, vou refazer a pergunta que eu achei que tinha postado e havia sido bloqueada... O seu texto é bacana, e concordo com quase tudo... Só tem um pequeno porém em algumas partes das suas críticas...

      Você usa o jargão "reaça" e termina falando sobre "capitalismo selvagem"... Porém, se você analisar o mundo, nos países onde existe REALMENTE um capitalismo selvagem, onde os impostos são baixos e os serviços públicos quase inexistentes, onde a liberdade econômica é plena e praticamente não existem estatais, os garis - e os garçons, as faxineiras, os pintores, os pedreiros - ganham bem!

      E exatamente nos países onde existem impostos astronômicos, sendo justificados por sistemas sociais que beiram o socialismo, onde agências estatais regulam o mercado inteiro e os governantes são de esquerda assumida é que garis - e todos os outros empregos que não requerem especialização - ganham uma merda.

      Como você explica isso? rs...

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    4. A questão do ganhar bem ou mal é sempre relativa: a) aos outros da mesma sociedade (e portanto dependente da maior ou menor dispersão da distribuição de renda); b) aos de outros países - o que é uma comparação bem mais complicada de ser feita, já que envolve o poder de compra relativo, e não pode ser feita direto fazendo a conversão. Se a gente for fazer essa comparação, pensando em poder de compra, países onde os impostos são proporcionalmente muito mais altos do que os daqui - penso particularmente na Escandinávia, capitalista mas com um capitalismo muito mais regulado do que o nosso - têm também uma dispersão entre os salários mais altos e mais baixos bem menor do que a nossa (que, aliás, é das piores do mundo). Assim, pode-se dizer que os lixeiros na Escandinávia certamente ganham bem. Mas o capitalismo deles é também muito menos selvagem do que o nosso.
      Veja tb a resposta mais abaixo, de "Anônimo".

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    5. Eu não estou fazendo comparação entre países não, estou fazendo comparação dentro do próprio país... Nos EUA um lixeiro ganha mais do que muitas profissões, podendo ficar acima do salário de 90% da população (veja minha resposta para o anônimo).
      No Japão, que é outro país repleto de "porcos capitalistas", um lixeiro ganha mais que um arquiteto.

      Quanto a Escandinávia, eles tem um capitalismo menos selvagem do que o nosso... será? Depende do que você toma por capitalismo menos selvagem... A Dinamarca possui um mercado mais liberal do que os EUA, enquanto a Suécia e a Finlândia estão no top 20 países com maior liberdade econômica: http://www.heritage.org/index/ranking

      O único período da história em que a Escandinávia podou o capitalismo foi entre os anos 50 e 70, exatamente no período onde eles quase afundaram... Por sorte reabriram o mercado, reduziram os impostos e voltaram a crescer...

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    6. andrés, acho que você deveria se informar por outras fontes e não pelo heritage. na Suécia existe teto para ganho, imposto de 60% na fonte - é o que o pai do meu marido paga - imposto, mais imposto, mais imposto. lá, tudo é regulado, inclusive a bebida, que é vendida pelo governo. em 10 anos de governo moderado, eufemismo para direita, os impostos abaixaram um pouco e eles perderam em qualidade de vida, hoje a grita é para aumento de impostos. acredite se quiser. ah, se vc tiver 5 mil dólares no banco é considerado fortuna e paga imposto extra. na época do Olof Palme, que é quando o país mais se desenvolveu, ao contrário do que o heritage prega, o estilo de vida, que ainda persiste até hoje, foi iniciado e é orgulho do povo. por lá, ninguém pode se considerar melhor que outro. isto é considerado o horror dos horrores. reduziram os impostos? você está de brincadeira. os países escandinavos estão sempre na dianteira da cobrança de impostos. portanto, as suas fontes estão muito erradas.

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  2. Lucia M R Kloosterman5 de março de 2014 às 17:46

    Gostei muito , todos deviam ler principalmente os que estão " indignados" com a greve
    Lucia M R Kloosterman

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    1. obrigada, Lucia. A gente faz um pouquinho, que é o que dá contra a grande mídia que massacra. Que bom que tem as redes e que o pessoal faz circular.

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  3. Andres, nos EUA um gari "ganha bem". Não, ele não ganha bem, não para os parâmetros de salários americanos. Ele ganha bem para os parâmetros de salário de governador Valadares (q ficou célebre por ser campeã de envio de mão de obra barata pros EUA). Ele mora num trailer (com aquecimento central, mas um trailer) e sabe que nem ele nem seus filhos irão cursar a universidade. Mas sim, para os nossos parâmetros, ele ganha beeeem.

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    1. Informe-se: um gari nos EUA ganha melhor do que 70% da população do país, um supervisor de gari então ganha mais que 90% da população americana.
      http://www.primeirahora.com.br/noticia/76233/ser-lixeiro-em-nova-york-da-bom-salario-e-vantagens

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    2. Andrés, não censuro comentário antes, mas censuro grosseria. Favor não abusar. Grata.

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    3. Andrés,

      Faltou você dizer que, nesse mesmo país onde os garis ganham bem, 42 milhões de pessoas não teriam o que comer se não fosse pelos "food stamps", que foram criados pelo governo local durante a depressão econômica da década de 1930. Faltou você dizer também que, embora esse mesmo país seja, na média, muito mais seguro do que o nosso, algumas de suas grandes cidades são tão violentas quanto as principais cidades brasileiras.

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  4. Numa reportagem televisiva, a repórter destaca restos de fantasia, latinhas de cerveja... será que foi algum gari relapso, inconsequente, irresponsável que jogou essa, agora, sujeira na rua?
    Onde está a educação daqueles que, talvez, considerem-se melhor do que os garis?

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  5. Obrigada pelo teu texto, Renata! Excelente!
    Saliento:
    "Trabalho insalubre. Trabalho pesado. Trabalho que necessitaria de muito mais proteção do que eles têm, por conta da exposição a doenças. Por conta do contato direto com o lixo dos outros. O lixo que eu, que você, que todo mundo produz em quantidade. Feio, fétido. O lixo que a gente não quer ver, do qual a gente não quer saber. Pois é. Quem dá conta dele são os garis".
    Curiosidade:
    Porque os profissionais que trabalham na Assistência Social (com população em situação de rua, por exemplo) ganham menos que os profissionais que trabalham em outros setores? Especialmente os educadores sociais (líquido, menos de R$ 900,00) que "colocam a mão na massa", dão banho, limpam fezes encrustadas nas roupas, catarro (muitos tuberculosos), etc...?
    Comemoram quanto alguma pessoa atendida consegue se fixar como gari! Poucos passam no teste. Exemplo:
    http://www.paranagua.pr.gov.br/imgbank2/file/concursos/prova_fisica_agenteop.pdf

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  6. “profissão de agente de coleta de resíduos, de limpeza e de conservação de áreas públicas”.
    http://www12.senado.gov.br/noticias/materias/2014/01/15/piso-salarial-de-r-1-2-mil-e-regulamentacao-da-profissao-de-gari-em-pauta-na-cas

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  7. Muitas pessoas fazendo muitas coisas muito sérias! Pouco tempo para dar atenção ao que é vital. Obrigada pelo ótimo artigo!

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  8. Garis da Holanda apoiam a greve dos garis brasileiros.

    https://www.facebook.com/midiaNINJA/photos/a.164308700393950.1073741828.164188247072662/284490238375795/?type=1&stream_ref=10

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