terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Neste ano novo, permita-se

Neste ano novo
permita-se
ficar em casa
não estar animado
ver aquele filme na TV
ler um livro adiado
ir dormir, se estiver a fim
chorar, se estiver com saudade
se sentir magoado ou triste
permita-se
deixar a alma quietinha
o coração em silêncio
ficar sozinho
não fazer nada do que querem
do que dizem
do que pregam
fazer tudo ao contrário
ou não fazer
até
neste ano novo, permita-se

terça-feira, 24 de dezembro de 2013

Uma galera contra Netuno



Aí tem uma hora em que eu me olho no espelho e não me reconheço mais.
Quem é esse ser sem forma, fluido e sem contornos, esse ser-esponja marinha que tudo absorve e incorpora? Cadê eu, meu corpo definido e tendendo para o pontudo, suas pernas, seus joelhos, cotovelos - eu-cavalo de fogo, cadê?

Netuno dissolve e dilui, espalha e transborda. Netuno indefine. Enevoa. Desincorpora.
E meu mapa conta essa história, é assim - uma galera contra Netuno. E Netuno ganha. Eu deságuo. disperso. Me perco.

Mas mesmo lá do fundo da nuvem, lá longe da praia, eu sei, lembro baixinho, mas lembro: tem "uma galera". Sol, Marte, Mercúrio. Todo mundo ancorado na placidez taurina, na segurança terrena, na concretude bovina. Todo mundo fazendo contrapeso à dissolução de Netuno.
E justo quando eu pensava que desta vez não ia e que eu ia afundar de vez nas águas turvas, emerjo: recupero forma, solidez, corpo, chão. Piso na praia.
 Recupero.
[inspira]
 Eu.
[expira]
 Identidade.
[inspira]
 Sou.
[expira]
Nome.
Renata.
Renascida.
Mais uma vez.



imagem daqui

sábado, 14 de dezembro de 2013

Um Pedacinho Dessa História



Esse texto faz parte da 8ª Blogagem Coletiva #DesarquivandoBR.  Aqui, a convocação e a explicação.


Outro dia fui assistir a uma mesa na Biblioteca Nacional, onde está tendo um ciclo de debates sobre exílio. Essa era uma mesa chamada "Dor e Amor: os Exilados da Ditadura" em que, além de uma historiadora (Maria Paula Araujo), tinha filhos. A Flavia Castro, minha grande amiga de adolescência, diretora do premiado "Diário De Uma Busca", em que retraça  a trajetória do seu pai, o jornalista Celso Castro, exilado da ditadura, mas também a sua própria, no Chile, na Bélgica e, por fim, na França, e José Almino de Alencar, sociólogo e escritor, filho de Miguel Arraes, exilado na Argélia, em Paris, e depois, como ele contou na mesa, nos Estados Unidos, por escolha própria. 

Uma mesa sobre filhos de exilados: uma mesa sobre mim, que eu assisto como se estivesse também no palco, rindo e me emocionando com eles, balançando a cabeça e discutindo internamente. Falou-se de idade: José Almino saiu do Brasil já com dezessete anos, enquanto Flávia era criança ainda (como eu). Isso, é claro, muda toda a perspectiva - uma pessoa de dezessete anos já tem um "olhar sobre o mundo" formado, amigos, círculo próprio: uma pessoinha de seis anos que passa anos longe do seu país de origem vai ser, em certa medida, estrangeira. Ainda mais naqueles tempos de comunicação difícil. Por carta. Por eventuais discos e livros que chegassem. 


Flávia falou, então, sobretudo, da dor da volta. E é com essa que me conecto. É disso que queria falar. A volta, cacete. A minha. 

Eu tinha doze pra treze anos: era comecinho de adolescência. Primeiros encantamentos com meninos, primeiras músicas lentas, primeiro lápis no olho. Eu tinha uma melhor amiga, Isabel, filha de espanhóis emigrantes. Eu entendia o tempo em quatro estações bem definidas, usava camisas sociais velhas do meu pai com calça jeans, sabia discos inteiros do Chico de cor e tinha uma idéia de Brasil. A idéia de Brasil que vinha dos meus pais e dos seus amigos, das intermináveis discussões sobre a conjuntura que a gente acabava ouvindo, das histórias daquela juventude que sonhava fazer um país novo e que por isso tinha sido perseguida pela ditadura, pelos militares. 


Cheguei no Rio em 79. Em plena era "Dancin' Days". Meias soquete brilhantes com sandálias. Calor imenso. Choque. Essas coisas que a gente não pensa, mas que fazem tanta diferença: as meninas aqui usavam roupas tão "de menina", seguiam moda - e me perguntavam sobre isso, sem que eu soubesse nem como começar a responder. Eu ouvia rock e cheguei em plena era disco. Eu ouvia Chico, Beth Carvalho, Clara Nunes e eles... eu nem me lembro. Eu falava português, certo, mas com outra entonação, com os maneirismos tomados emprestados aos adultos com quem a gente convivia lá; eu não conhecia gírias, não parecia local. Eu não os entendia, eles não me entendiam. E ainda tinha aquilo que eu já contei em outro texto e que tornava tudo tão mais complicado: eu tinha que dizer que meu pai tinha ido para a Europa "a trabalho".  Tudo tão difícil e eu nem podia contar quem eu era de verdade.

E o que mais me chocava, o que mais me impressionava e me fazia ficar ainda mais calada: na escola, naquela minha escola de padres progressistas da Zona Sul do Rio de Janeiro, meus colegas pareciam viver como se tudo estivesse normal. Não pareciam saber de nada. De nada, quer dizer: daquilo que tinha acontecido com a gente. De tudo o que a gente tinha vivido. Não pareciam saber, nem se interessar. Outro mundo. Outra narrativa. Uma narrativa em que a gente estava de fora.

Outro dia eu disse isso, numa brincadeira de lista: o fato de eu ter passado a infância fora do Brasil por conta de perseguição da ditadura moldou minha identidade e meu olhar sobre o mundo. Daí é que eu me explico e me entendo. Tanto tempo depois, isso ainda me define em muitas medidas. Ouvindo  Zé Almino e Flávia trocando lembranças naquele dia na Biblioteca Nacional, achei que pra eles também isso era verdade. Embora no caso de Zé Almino a dor da saída, o se sentir estrangeiro lá fora, seja o peso maior, e no nosso caso - meu e da Flávia - a volta seja a grande marca que fica, essa história, lá atrás, tá presente na gente hoje, na vida, no olhar, no corpo. E tanto disso ainda precisa ser contado e recontado, passado adiante para que não seja esquecido. Relembrado. Trazido à tona. Explicado, descrito, entendido, discutido. Tanto disso precisa ser conhecido ainda. 





quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Duas listas e o lado-sombra






O meme desses dias no feicebuque: listas. Do que as pessoas não sabem de você. Do que as pessoas deveriam saber de você. Fiquei pensando nisso. No que a gente escolhe pra contar. Fiz minhas listas sem pensar muito, no estilo uma-coisa-puxa-outra. Mas adiciono uma terceira aqui, pra efeito de comparação. Uma lista "sombria". Tudo sou eu, tudo depende de como se conta essa história. O que se pinça. Qual é o ângulo.
Vão as duas primeiras, e a terceira do "lado-sombra". Que talvez nem seja. Mas enfim.

A primeira, de coisas que talvez não saibam sobre mim

1. sou canhota
2. nasci na Maternidade São Paulo (embora não vá contar pro FB)
3. desenhar é das coisas que me fazem feliz na vida
4. só decidi mesmo o que ia fazer na fila do vestibular
5. por muito, muito tempo, tive medo de dormir no escuro
6. até os 12 anos não sabia que as pessoas recebiam carta em casa, porque a gente não
7. a primeira coisa de que lembro é do nascimento do meu irmão: eu tinha 1 ano e 360 dias
8. releio livros como reencontro velhos amigos
9. amigo pra mim é pra sempre: tenho a maior dificuldade de deixar de gostar de gente
10. faço uma interpretação bem boa da Dalida cantando "Paroles Paroles", em francês com sotaque italiano
11. ou é com intimidade ou não será
12. assobio lindamente com dois dedos na boca
13. o filme que eu vi mais vezes na vida é Pele de Asno, do Jacques Demy (ah, meu príncipe)
14. adoro os desenhos de princesa da Disney, com especial predileção por Cinderela
15. cheguei a pensar em largar a faculdade pra estudar canto lírico
16. Agatha Christie é minha mentora
17. Rezo quando viajo de avião. Na decolagem e na aterrissagem. Toda vez. (em time que tá ganhando...)

A segunda, de coisas que deveriam saber:

1. o fato de eu ter passado a infância fora do Brasil por conta de perseguição da ditadura moldou minha identidade e meu olhar sobre o mundo
2. eu falo com as mãos, sempre
3. faço caretas, muitas
4. minha voz meio rouca é boa pra cantar e eu adoro
5. gosto de comer com gente de que gosto
6. sou de mesa de bar, encontros, copos e gargalhadas
7. gargalhada: dá pra ouvir do outro quarteirão
8. mato barata sem nem piscar
9. sou tímida e espalhafatosa
10. sou do Recife com orgulho e com saudade, embora não tenha nascido lá
11. Como a Ana Paula Medeiros, sei usar a crase e lhe devoto certo afeto, mas como somos só nós duas, acho que ela deveria acabar e não se fala mais nisso#AbaixoACrase
12. a família e os amigos são o meu esteio e a minha casa
13. se precisar, pode me ligar
14. uma alegria: criar redes entre as redes
15. Outra: dormir em rede
16. independência de pensamento está entre meus valores mais preciosos
17. não tem lugar onde eu esteja tão feliz quanto na estrada
18. sou da galera do "por que não?"

E uma a mais: sou feliz no carnaval.


A terceira, o lado-sombra:

1. Minha mãe foi embora sem eu saber quando eu tinha dois anos, e só me recuperou umas semanas depois
2. Durante boa parte da infância, tive pesadelos horríveis, que me faziam ter pânico de dormir
3. Perdi minhas coisas todas quando tinha sete anos e meus pais tiveram que sair do Brasil. O que eu queria    ter recuperado eram os álbuns de fotografias
4. Cheguei de volta ao Brasil com quase 13 anos: era estrangeira e não tinha mais pra onde fugir
5. Com 17 anos tive uma gravidez tubária e fiz uma cirurgia de emergência que me fez perder uma trompa
6. Fui assaltada no meu quarto, na minha cama: me acordaram com um revólver na cabeça. Eu devia ter uns  19 anos e morava com meu irmão de 17
7. Quando meu primeiro filho nasceu, tive um linfoma de Hodgkin, que me obrigou a parar de amamentá-lo com três meses pra fazer quimioterapia
8. A saudade sempre fez parte de mim.

Releio o lado-sombra. Sou eu também. E não sou. É apenas outra forma de contar a história. A gente escolhe.

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Pessoas inteligentes e supostamente bem informadas

Pessoas inteligentes e supostamente bem informadas. Supostamente (e esse é necessário, ao contrário de tantos outros).

Pessoas inteligentes, articuladas, mas que estão fora das redes sociais. Onde é que elas se informam? Nos jornais, ora. Jornais? No Rio hoje só tem um jornal. Um único jornal. Monopólio absoluto. E eles sabem. E manipulam. E mentem. E não noticiam. 
E é tudo feito para vender uma opinião específica. 
As manifestações? Incríveis, alegres, enormes, diversificadas e... só se noticiam as "depredações", os "vândalos".
Polícia? Violência? Pancadaria? Ninguém sabe, ninguém viu.
São vândalos, afinal. Vândalos que depredam o patrimônio.
Prisões arbitrárias, sem sentido, de gente que nem se conhece, por "formação de quadrilha"? Não, a notícia é que "vândalos" foram presos.
"Vândalos" é o novo pretinho básico. Pretinho black bloc básico.
Black blocs aplaudidos pelos professores, apoiando as manifestações?
Ninguém sabe, ninguém viu. Muito menos a nossa monolítica imprensa.

Mas quando um coronel é agredido em São Paulo, ah, aí é diferente.

E o Rafael, catador, que continua preso por porte de Pinho sol desde 20 de junho?
E o Baiano, preso na manifestação de 15 de outubro junto com tantos outros "vândalos"?
E a manifestação na escadaria do IFICS, onde os meninos liberados relataram as violências sofridas, onde a instituição tomou posição contra a violência da polícia, contra as arbitrariedades, contra a democracia ameaçada, quem cobriu?
Quem?
E a manifestação da semana passada, as pessoas andando em silêncio pela Rio Branco, todo mundo junto, calado, caminhando pelo estado de Direito e contra as prisões que se mantém?

Quem cobriu?

Não teve violência? Não teve "vândalos"? Ah, não interessou à imprensa. Imprensa? Não interessou a nosso único jornal. A nossa (quase) única rede de TV.

Aí, sinto muito: pessoas inteligentes, articuladas, não dá nem pra começar a conversar. Não dá pra conversar com base na descobertura do monolito.
Informem-se primeiro.

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

A semântica do reacionarismo a partir de um editorial do Globo



 (aquele que pediu desculpas por ter apoiado a ditadura, mas pelo visto era só estratégia de márquetchin)

cenas de banditismo.
lamentáveis provocações. 
grupos de arruaceiros. 
vandalismo. 
demonstrações de barbarismo juvenil. 
violência pela violência. 
criminalidade.
ameaças ao estado de direito e à democracia.
vândalos. 
baderneiros.
táticas de provocação.
perfil dos arruaceiros.
depredações.

falanges anarquistas. 
grupos de mascarados. 

tráfico. 
problema do vandalismo.

cenas de violência.
black blocs.
quebra-quebra.
ação dos vândalos. 
arruaceiros de rosto coberto.
paramentados para o confronto. 
pânico.
horda.
Lei de Segurança Nacional. 
demonstrações de incivilidades. 
manifestações (...) hospedeiras de vândalos.
grupos antidemocráticos. 

E a última frase vai completa:

"É preciso evitar as faíscas para não alimentar incêndios."

(obrigada à Maria de Paula por ter me apontado essa pérola do cancioneiro reaça nacional, que não deve nada aos editoriais de outros tempos de exceção.)

sábado, 28 de setembro de 2013

Um fio de Ariadne



Leio "farfalla".
Só isso.
E é imediato.
Vem a música inteira.
A sala na penumbra.
O estômago apertado.
As mãos geladas.
A dificuldade de respirar.
E ele. Ele, claro.

- sempre teve um "ele -
A primeira música lenta
("le premier slow")
a gente não esquece.
E volta, assim,

inteirinha, 
pelas asas de uma farfalla à toa.