quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Fábula Singela Sobre Um País Imaginário




Era uma vez um país que tinha uns pouquinhos donos.
O país tinha uma puliça que o mantinha na mão dos donos pouquinhos.
Donos de muito, o país era grandão.
Aí um dia os donos acharam que os outros tavam se engraçando muito, querendo quem sabe um pedacinho daquele tantão que era dos pouquinhos.
Prenderam, arrebentaram, botaram no pau-de-arara, mandaram pra fora, baniram, exilaram. Mataram. Desapareceram.




Um tempo depois, à custa de muita luta, deixaram os de fora voltar, soltaram os que tavam presos.
Mas continuou tudo assim: uns donos pouquinhos, e toda aquela gente de fora. Querendo um pouquinho também.

Chegou um pessoal que brigava junto com os de fora: um pessoal que era de fora também. E as gentes se alegraram. Fizeram festa. Choraram.
"Finalmente", pensaram as gentes.
E algumas coisas aconteceram: os salários melhoraram, e quem não conseguia trabalho pode ganhar algo pra comer.
Foi importante isso, sem dúvida.

Só que.

Depois de uns anos, ficou claro que era isso mesmo. Que aquilo que seria um caminho era visto como um fim por esses que chegaram e por quem as gentes se alegraram.
As gentes queriam outras coisas. Queriam poder circular sem ter que doar o fígado nem se imprensar em latas de sardinha (que era o meio de transporte desse país aí). Queriam poder ir ao médico, quando ficavam doentes, sem medo de morrer antes de conseguir ser atendidas.
Queriam poder tocar violão, ir à praia, andar de bicicleta, brincar com as crianças.
Queriam, e foram pra rua pedir.
Aí não prestou.
Aí o governo daqueles que eram deles não gostou nem um pouco: "Como? A gente já fez tanto por vocês? Vocês ainda não estão satisfeitos? Ah, assim não vai dar".
E não deu.

[continua na vida de todo dia]



segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

O Ano da Aliança

Mont Saint-Michel

Tem lugares onde se passa pouco tempo e tanto se aprende. Nem posso dizer que passei pouco tempo na Aliança Francesa: passei foi muito tempo lá. Como aluna. Quatro anos importantes. Era pra serem três, mas acabei o Nancy com dezessete anos, e a Aliança não dava diploma de Nancy (com equivalência a nível superior, bastando um ano de complementação pedagógica pra se obter a licenciatura em Letras) a menores de dezoito.. Fiz mais um ano, sem pagar (gracias, Bernard Plaud)  e feliz.

Mais um ano: novos colegas, novos livros estudados. Eu amava aquilo, por que iria reclamar? A gente tentou, não rolou autorização da França. Então. Mais um ano de Karydakis. De Raquel Ramalhete. E eu iria dizer não? Tava eu lá, com Ionesco, Prévert, Voltaire. Olho brilhando pro novo de novo.

Aí no final do ano teve treinamento para novos professores. Uma semana de intensivo, dada pelos diretores das Alianças do Rio todos. Saí dali com emprego em duas unidades da Aliança: Botafogo (a minha) e Ipanema.

Entrei lá e dava aula de manhã e de noite: à tarde, faculdade.
Tranquei a faculdade, fiquei só dando aula, no segundo semestre. Queria conseguir juntar grana pra fazer a peregrinação necessária a Genebra, à Europa. Revisitar casas, escolas, pessoas, paisagens. Me convencer que era brasileira 100%, que agora eu ficava no Brasil por escolha e não porque tinha sido levada.

A Aliança: um dos melhores lugares do mundo pra entrar no universo do trabalho. Pra começar, não era escritório e isso faz toda a diferença: eu trabalhava mais do que 40 hs/semana, mas não me dava conta. Era tão divertido aquilo tudo. Tanta gente nova, esses alunos todos. Eu, mais nova do que quase todos eles. Mas tinha segurança: não só da língua, como dos anos de aprendizado de pedagogia por osmose, com minha mãe que com isso trabalhava. Métodos, técnicas, jeitos. Trabalho em conjunto, dinâmica de grupo, Piaget e Paulo Freire. A Aliança: meu laboratório pessoal.

E tinha o afeto, aquela galera toda que ficava amiga e que me chamava pra tomar chope, a turma que fez uma "fotonovela" com imagens da Fernanda Torres (então minha sósia, ou assim diziam) pra me dar de presente de aniversário. Uma fotonovela em francês. Chorei.

O jeito de aprender: criando afeto. Fazendo sentido com a vida. Paulo Freire na veia. Se não for isso, é decoreba. É "pra prova". E tá esquecido no outro dia. Língua materna é materna por conta disso, acredito. Por conta do afeto. Das memórias. Dos vínculos criados que constituem nexo e estruturam o mundo e a linguagem de cada um. E podem ser várias as "línguas maternas"; a ligação com estas vai ser sempre diferente da ligação com as outras, estudadas, aprendidas, mas sem a história da infância, sem as descobertas da adolescência a lhes dar cor, cheiro, textura, sabores. Estofos.

Passei um ano e meio dando aula na Aliança. E só. Mas parece que foi uma década, de tanto que aquilo me trouxe. De tanto que me fez pensar. A Raquel ainda me botou pra dar aulas de português para estrangeiros, com o método que ela tinha desenvolvido na pós-graduação: "Tudo Bem". Espelhos. Trocas. Gente com novos olhares alargando meu mundo.

Foi um ano só, e faz tanto tempo. Mas tá aqui, vivinho e quente, como se tivesse sido outro dia ainda. Quase agorinha. Pulsando nas lembranças. Organizando meu olhar sobre o mundo.

Gárgulas de Notre Dame



quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

About Last Night




O sonho foi assim, e foi um sonho bem bom de se ter. Daqueles que a gente acorda ainda meio sorrindo.
A história era que eles estavam conversando em uma casa de alguém e ela deu um beijo nele. Um beijo de impulso, como ela seria bem capaz de dar. Meio na ponta dos pés.
E eles nem conversaram direito depois, porque na casa ampla onde se passava o sonho tinha outras pessoas, entrando, saindo. Teve o beijo e ela saiu.
Aí quando foi pegar o maço de cigarro esquecido ali, naquela sala onde tinha rolado o beijo, achou o bilhetinho dele. Um bilhetinho desses que a gente lê e esquenta a alma. 

Mesmo que agora, contando, ela não lembre mais o que tinha escrito. Era pequenino o bilhete. Estava enfiado no plástico do maço de cigarros. E era um texto daqueles dele, precisos. Desses que tantas vezes fazem-na sorrir. Que nem o sonho.


Divã laminado de letra cursiva



Letra, pra mim, é objeto de divã.
Eu sou canhota.
Eu pulei o que era então chamado de "Pré-primário", que vem a ser a classe de alfabetização. Onde se aprende a ler, e isso eu sabia: e a escrever (a parte mecânica da coisa), e isso eu não.
Daí com 7 anos (eu tava entrando na 3a série), pimba! - polícia, fuga, blablablá... vou morar no século XIXops, não, na Suíça.
A gente bebia água da fonte no meio do pátio (ou da torneira do banheiro).
 O quadro negro era limpo com uma mega esponja que ficava dentro de um balde.
e a gente escrevia com caneta-tinteiro, gentilmente fornecida pelo Estado de Genebra.
Cês podem imaginar o drama? Canhota, com essa escrita pra destros da esquerda pra direita, e caneta-tinteiro?




Daí hoje eu gosto da minha letra. 
(Sempre gostei de ser canhota. Ariano desafio.) 
Escrevo de caneta-tinteiro, quando dá.
Na vertical, que não cansa meu pulso e nem borra.
Na vertical, mesmo quando não é caneta-tinteiro.
Mas foi aí que eu aprendi.




terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Neste ano novo, permita-se

Neste ano novo
permita-se
ficar em casa
não estar animado
ver aquele filme na TV
ler um livro adiado
ir dormir, se estiver a fim
chorar, se estiver com saudade
se sentir magoado ou triste
permita-se
deixar a alma quietinha
o coração em silêncio
ficar sozinho
não fazer nada do que querem
do que dizem
do que pregam
fazer tudo ao contrário
ou não fazer
até
neste ano novo, permita-se

terça-feira, 24 de dezembro de 2013

Uma galera contra Netuno



Aí tem uma hora em que eu me olho no espelho e não me reconheço mais.
Quem é esse ser sem forma, fluido e sem contornos, esse ser-esponja marinha que tudo absorve e incorpora? Cadê eu, meu corpo definido e tendendo para o pontudo, suas pernas, seus joelhos, cotovelos - eu-cavalo de fogo, cadê?

Netuno dissolve e dilui, espalha e transborda. Netuno indefine. Enevoa. Desincorpora.
E meu mapa conta essa história, é assim - uma galera contra Netuno. E Netuno ganha. Eu deságuo. disperso. Me perco.

Mas mesmo lá do fundo da nuvem, lá longe da praia, eu sei, lembro baixinho, mas lembro: tem "uma galera". Sol, Marte, Mercúrio. Todo mundo ancorado na placidez taurina, na segurança terrena, na concretude bovina. Todo mundo fazendo contrapeso à dissolução de Netuno.
E justo quando eu pensava que desta vez não ia e que eu ia afundar de vez nas águas turvas, emerjo: recupero forma, solidez, corpo, chão. Piso na praia.
 Recupero.
[inspira]
 Eu.
[expira]
 Identidade.
[inspira]
 Sou.
[expira]
Nome.
Renata.
Renascida.
Mais uma vez.



imagem daqui

sábado, 14 de dezembro de 2013

Um Pedacinho Dessa História



Esse texto faz parte da 8ª Blogagem Coletiva #DesarquivandoBR.  Aqui, a convocação e a explicação.


Outro dia fui assistir a uma mesa na Biblioteca Nacional, onde está tendo um ciclo de debates sobre exílio. Essa era uma mesa chamada "Dor e Amor: os Exilados da Ditadura" em que, além de uma historiadora (Maria Paula Araujo), tinha filhos. A Flavia Castro, minha grande amiga de adolescência, diretora do premiado "Diário De Uma Busca", em que retraça  a trajetória do seu pai, o jornalista Celso Castro, exilado da ditadura, mas também a sua própria, no Chile, na Bélgica e, por fim, na França, e José Almino de Alencar, sociólogo e escritor, filho de Miguel Arraes, exilado na Argélia, em Paris, e depois, como ele contou na mesa, nos Estados Unidos, por escolha própria. 

Uma mesa sobre filhos de exilados: uma mesa sobre mim, que eu assisto como se estivesse também no palco, rindo e me emocionando com eles, balançando a cabeça e discutindo internamente. Falou-se de idade: José Almino saiu do Brasil já com dezessete anos, enquanto Flávia era criança ainda (como eu). Isso, é claro, muda toda a perspectiva - uma pessoa de dezessete anos já tem um "olhar sobre o mundo" formado, amigos, círculo próprio: uma pessoinha de seis anos que passa anos longe do seu país de origem vai ser, em certa medida, estrangeira. Ainda mais naqueles tempos de comunicação difícil. Por carta. Por eventuais discos e livros que chegassem. 


Flávia falou, então, sobretudo, da dor da volta. E é com essa que me conecto. É disso que queria falar. A volta, cacete. A minha. 

Eu tinha doze pra treze anos: era comecinho de adolescência. Primeiros encantamentos com meninos, primeiras músicas lentas, primeiro lápis no olho. Eu tinha uma melhor amiga, Isabel, filha de espanhóis emigrantes. Eu entendia o tempo em quatro estações bem definidas, usava camisas sociais velhas do meu pai com calça jeans, sabia discos inteiros do Chico de cor e tinha uma idéia de Brasil. A idéia de Brasil que vinha dos meus pais e dos seus amigos, das intermináveis discussões sobre a conjuntura que a gente acabava ouvindo, das histórias daquela juventude que sonhava fazer um país novo e que por isso tinha sido perseguida pela ditadura, pelos militares. 


Cheguei no Rio em 79. Em plena era "Dancin' Days". Meias soquete brilhantes com sandálias. Calor imenso. Choque. Essas coisas que a gente não pensa, mas que fazem tanta diferença: as meninas aqui usavam roupas tão "de menina", seguiam moda - e me perguntavam sobre isso, sem que eu soubesse nem como começar a responder. Eu ouvia rock e cheguei em plena era disco. Eu ouvia Chico, Beth Carvalho, Clara Nunes e eles... eu nem me lembro. Eu falava português, certo, mas com outra entonação, com os maneirismos tomados emprestados aos adultos com quem a gente convivia lá; eu não conhecia gírias, não parecia local. Eu não os entendia, eles não me entendiam. E ainda tinha aquilo que eu já contei em outro texto e que tornava tudo tão mais complicado: eu tinha que dizer que meu pai tinha ido para a Europa "a trabalho".  Tudo tão difícil e eu nem podia contar quem eu era de verdade.

E o que mais me chocava, o que mais me impressionava e me fazia ficar ainda mais calada: na escola, naquela minha escola de padres progressistas da Zona Sul do Rio de Janeiro, meus colegas pareciam viver como se tudo estivesse normal. Não pareciam saber de nada. De nada, quer dizer: daquilo que tinha acontecido com a gente. De tudo o que a gente tinha vivido. Não pareciam saber, nem se interessar. Outro mundo. Outra narrativa. Uma narrativa em que a gente estava de fora.

Outro dia eu disse isso, numa brincadeira de lista: o fato de eu ter passado a infância fora do Brasil por conta de perseguição da ditadura moldou minha identidade e meu olhar sobre o mundo. Daí é que eu me explico e me entendo. Tanto tempo depois, isso ainda me define em muitas medidas. Ouvindo  Zé Almino e Flávia trocando lembranças naquele dia na Biblioteca Nacional, achei que pra eles também isso era verdade. Embora no caso de Zé Almino a dor da saída, o se sentir estrangeiro lá fora, seja o peso maior, e no nosso caso - meu e da Flávia - a volta seja a grande marca que fica, essa história, lá atrás, tá presente na gente hoje, na vida, no olhar, no corpo. E tanto disso ainda precisa ser contado e recontado, passado adiante para que não seja esquecido. Relembrado. Trazido à tona. Explicado, descrito, entendido, discutido. Tanto disso precisa ser conhecido ainda.