E, depois de um tempão, volto ao desafio. Com "um livro de que ninguém esperaria que você gostasse". E não tinha abandonado não: é que faz parte da minha maluquez levar tudo tão tão a sério que consigo ficar dias pensando sobre a propriedade ou não de um livro pro tópico... e, neste caso particular, o problema é que eu digo aos quatro ventos que não tenho critério claro, que gosto de tanta coisa... que é difícil pensar algum que ninguém esperaria.
Então repito um sobre o qual já foi feito um post bem melhor que este (nem escrevi ainda, mas já sei): a Bíblia. O post é da minha xará Renata de Oliveira, e está aqui. Recomendo mesmo. E copio a idéia, por achar que muita gente que me conhece bem pode se surpreender com essa escolha. Acho que é a mais honesta.
Mas voltando: meu primeiro contato com a Bíblia se deu pela inusitada via de um vendedor de enciclopédia que, não sei como, conseguiu convencer minha mãe a deixá-lo entrar. Acho que isso nunca mais aconteceu na vida. Enfim. Deixou e o cara, enquanto conversava com ela, me deu a "Bíblia para crianças" para ler: vinha junto com a enciclopédia. E me conquistou. A história foi a de Caim e Abel, e fiquei extremamente impressionada. Com a injustiça. Sempre estive do lado de Caim, né. Claro. Tudo bem, ele meio que perdeu a razão quando matou Abel, que afinal não tinha nada a ver com isso. Que culpa tinha ele de ser fofo e de ser o queridinho do Senhor? Mas poxa, que injustiça. Por que foi mesmo que o Senhor "se agradou das oferendas de Abel" e não das de Caim? Cada um deu o que tinha de melhor, não foi? Não conseguia entender.
Muito tempo depois, voltei a essa história por conta de outro livro-obsessão: "A Leste do Eden", de Steinbeck. Onde ele recria a história, nos tempos modernos, com os irmãos Caleb e Aaron. E Steinbeck, evidentemente, também está do lado de Caim. Injustiçado e marcado, com toda sua descendência. Marcado pelo Senhor, que àquele tempo decidia sem acolher. Marcado só porque, no fim das contas, Deus preferiu os produtos do agricultor do que os do pastor. E a razão pra isso ninguém sabe. Gosto não se discute, só que às vezes tem conseqüências...
Antes desse segundo encontro com Caim e Abel, porém, fiz um monte de anos de catecismo (era comum em Genebra: catecismo para os católicos, "religião" para os protestantes, durante toda a escolaridade) e fiquei amiga do Novo Testamento, que combinava bem mais com a religião que eu conhecia de casa - a da minha mãe que tinha sido de movimento católico na juventude (JEC, JUC) e pra quem a opção à esquerda estava intrinsecamente ligada à ética cristã.
O que não quer dizer que eu entendesse ou acatasse a "posição de Jesus" em todos os casos. E do Novo Testamento, destaco duas histórias que me marcaram por motivos diferentes.
A primeira é a de Marta e Maria: fiquei anos encanada com essa ... A história é a seguinte: Jesus vai visitar Marta e Maria, irmãs de Lázaro. Maria senta-se aos pés dele, e fica conversando, ouvindo histórias, enquanto Marta trabalha para servi-lo. Até que Marta reclama do que lhe parece ser uma injustiça, e Jesus a admoesta (tudo isso só pra poder usar "admoesta"): "Marta, Marta, Maria hoje escolheu a melhor parte". Isso também me parecia injusto, e eu pendi muito tempo para o lado de Marta. Até que - e é bom deixar claro que o processo inteiro durou anos: minha cabeça encanada não abandona nada tão fácil - comecei a achar que Jesus tava certo, e que tem dias, sim, em que a gente é Marta, tem dias que é Maria. O negócio é não estar sempre na mesma posição... mas na média...
A segunda história é uma conversa de Jesus com seus discípulos e vou dizer, essa já me fez muito mal ao longo da vida. Só recentemente tenho aprendido a me desprender dela. Porque com essa eu concordei: mas não mais. A história em questão é a do fariseu que entra no templo jogando dinheiro, mostrando a todos sua generosidade, enquanto entra um homem pobre que deixa ali sua moeda sem fazer alarde. Jesus mostra aos seus discípulos como o segundo, que deixa uma só moeda - que para ele vale muito mais do que todo o dinheiro deixado pelo fariseu - é mais digno de respeito e consideração. Como o que ele fez em silêncio vale muito mais do que o estardalhaço do outro.
Parece fazer todo o sentido do mundo.
E ninguém tem idéia é de como essa história - e o preceito ético que ela representa - moldou minha forma de ser e de agir por tanto tempo. Tanto, tanto tempo. Só que aí tem um pequeno problema, que eu demorei a identificar: muitas vezes, o sacrifício que você está fazendo (a moeda que é a única, que você deixa no templo em vez de comprar comida) não é visto nem sentido como tal por quem está em volta. E isso, nas relações, é fonte de inesgotáveis mágoas. Porque você acha que está dando o melhor e que o outro vai saber: o outro, na verdade, nem imagina o tamanho do esforço que você está fazendo, e se porventura em algum momento posterior você externa algum sinal de mágoa por conta disso, ele cai das nuvens. Nunca tinha imaginado. Nunca tinha se dado conta. Insensibilidade? Talvez. Mas também - e esse o meu aprendizado tardio - faltou sinalização.
E é isso: estou aprendendo a ir contra minha própria ética e a sinalizar. Não sinalizar, vejo hoje, é também uma forma de arrogância. O outro não tem obrigação de saber. E, se você não quer se magoar, é fundamental que ele saiba. Então é melhor dizer logo. Apesar de ser mais nobre deixar a moeda e sair em silêncio. Mas para isso, teria que ser alguém muito mais nobre do que eu.
Talvez tenha gente que consiga: fazer e desapegar-se. Não esperar nada de volta, nem mesmo reconhecimento. Eu sou menor que isso. Melhor deixar logo claro.
Que post danado de bom. Primeiro: a Bíblia Para crianças tinha uma capa amarela meio dourada? A minha era assim. A da minha irmã, anos depois, era em quadrinhos, mas não tinha a mesma graça. A minha tinha narrativas longas, que eu sempre prefiro.
ResponderExcluirDepois: tem outro Caim e Abel, muito menos denso, claro, mais pop: do Jeffrey Archer. Mesmo assim, gosto, especialmente do A Filha Pródiga, com os filhos de Abel e Kane.
Eu gosto do Velho Testamento, da intensidade. Gosto de Ester e de Judite e sempre achei meio sexy a situação da Rute ;-)
A capa? Não sei... minha mãe não comprou a tal enciclopédia. Só li enquanto o vendedor tava em casa! Por isso é que foi só essa história. E, curiosamente, só foi ter Bíblia na minha casa quando, uns dez anos depois, meu pai finalmente resolveu comprar uma enciclopédia...
ResponderExcluirE eu também gosto do Velho Testamento. Mas a Renata tinha feito um post tão legal sobre; e, além disso, o que me afetou de fato foi o Novo.
Primeiro, que bom que estás de volta ao meme. Adoro teus posts e tuas histórias. Tenho certeza que quando nos conhecermos pessoalmente teremos longas e boas conversas.
ResponderExcluirSegundo, esse meme dos livros prova que mesmo que em diversos momentos tenhamos escolhidos os mesmos livros (até nos casos de ser o mesmo livro no mesmo item como esse), a riqueza e a beleza está nas histórias de cada uma.
Beijo!
pois então, quando comentei lá no da Renata achei que iria escolher outro. E pensei à beça... mas não consegui achar outro... quase botei os contos de Andersen, só porque era meio inusitado e porque realmente adoro. Mas não seria de fato surpreendente, né? Eu amo contos de fada, contos de bruxa, contos tout-court. E isso parece meio evidente no que escrevo... não seria honesto. Beijos!
ResponderExcluirO bom da leitura foi a simplicidade com a qual a autora descreveu as situações. Da Bíblia gosto do Velho e do Novo Testamento. E a história de Jó sempre me assustou muito. É forte. Sem´pre tive medo de olhar para trás e virar estátua de sal.
ResponderExcluirGostei. A Bíblia, quando não usada para massacrar os demais, é uma excelente leitura. Tão animada quanto "As mil e uma noites".
Memélia
Gostei. Acrescento: http://moreintelligentlife.com/content/arts/ann-wroe/beginning-was-sound?page=full
ResponderExcluirSem prejuizo para o que diz, também tem isso: o som e a frase.
não tinha visto ese comentário! Vou ler o texto com só 5 anos de atraso... :)
ExcluirMuito lindo seu blog, gostei demais.. estou lhe seguindo ja *-* beijos
ResponderExcluirObrigada! (respondendo 5 anos depois)
Excluirpost otimo...
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