Pai, tá chegando perto dos sete anos, né. Sete anos já. Um quarto de ciclo de saturno. A "primeira maturidade" da sua ida pra outras aventuras.
Cacete.
Sete anos e o Brassens continua certo: "oui mais jamais au grand jamais/ son trou dans l'eau ne se refermait/ cent ans après/ putain de sort/ il manquait encore".
[pausa para enxugar rosto, senão não dá pra escrever]
Quando você foi, eu tinha ido ao hospital de manhã, com Marcelo. A gente tinha visto que não tava nada bom. E eu disse a você "se for pra ir, vai. A gente garante aqui. A gente cuida". Não sei se você ouviu, mas você foi.
Na hora, eu tinha acabado de chegar em casa quando mamãe ligou. E eu abracei minha força, chamada Felipe e João. Este último, tão pequeno. Abracei forte, chorei com eles. Puta que pariu. Não era pra ser ainda. Você era tão novo. O último aniversário que você comemorou, lembra, você disse que dali em diante só iria comemorar os redondos. E os com 5 no fim. De cinco em cinco. Não rolou, você foi com meia quatro.
Pensar que tão pouco tempo antes, em abril daquele ano, você e mamãe tavam em Minas, na Páscoa, preocupados com o estado de saúde de Márcio Moreira Alves. Irônico. Ele ainda ficou por aqui um bom tempo depois que você se foi. Enfim.
Tô aqui escrevendo hoje - quase que perdia o fio da meada no fluxo de memórias - pra te agradecer, cara. Agradecer pelos anos de conversa. Foram 38. Trinta e oito anos, acho que desde que eu nasci que você conversava comigo. E me ouvia. Sobre qualquer coisa.
A gente tinha discussões permanentes e pendentes, como aquela que gerou esse texto aqui, sobre cotas e impressões forasteiras.
Esse texto começou em Garbatella, Piazza Giovanni da Lucca. Numa conversa que rendeu, como tantas. Você a favor das cotas. Você, amigo de Carlos e Glória Moura. Que tinha pressa de resultados. E eu te dizia "mas é melhor um lugar onde as pessoas têm pudor de se assumirem racistas. No Brasil a gente tem problema de castas: as castas não querem se misturar." E na de baixo tem os "paraíbas", tem os negros pobres, tem tanta gente. Você lembrou de um amigo africano (de classe média ou alta, não sei bem) que disse que o Rio era a única cidade no mundo em que ele não se sentia negro. Pois. A conversa continua, tá em aberto. Eu acho a mesma coisa ainda. Mas sempre posso mudar de idéia. Defendo a minha até que me convençam, com unhas e dentes. Mas mudo.
Tinha aquela outra sempre em curso também, sobre reforma agrária. Nessa, você me convenceu e eu passei a defender sua posição. Comecei com aquela idéia tradicional de que para haver reforma agrária direito era preciso, primeiro, montar infraestrutura, estradas, água encanada, eletricidade. E você dizia "que nada, tudo isso é desculpa pra não fazer. Distribui terra em massa nesse país pra você ver: a infraestrutura acontece, as sinergias vêm, tudo se cria a partir do fato consumado". Você tinha toda razão e eu defendo. Recente pesquisa organizada pelo companheiro Moacir Palmeira (e outros, acho) mostra exatamente isso: nos lugares onde houve concentração de assentamentos - tão poucos, mas enfim - , as sinergias aconteceram, a infraestrutura "se criou". A partir da demanda. Claro. É assim que funciona.
Foi bonita a festa, pá. Nossa festa. Nossa família. A casinha de nós. E hoje, no Leme, recriamos. Seu lugar tá lá, claro, e a gente fala pros meninos - João, Maria, Antonio, Chico, Joaquim - de você, sempre. Felipe teve mais sorte, por ser mais velho. Conviveu de verdade. Você contou histórias pra ele, levou-o pra tomar sorvete. Ele esteve, sozinho, na casa de vocês em Brasília. Pelo menos um. Tom, Chico e Joca você não conheceu: mas não há de ser nada, eles vão te conhecer. A gente cuida.
...era isso, pai. Por hoje. Um agradecimento pelo respeito, pela liberdade. Pelo respeito à liberdade das idéias que você ensinava pra gente a cada dia. Acho que a gente (Marcelo, Ju, eu) aprendeu. A brigar pelas nossas. A mudar quando convencidos. E isso não tem preço, não é. Não tem. Gracias.
Todo o amor do mundo.
Tata.
que lindo....Marcos é uma pessoa muito especial, mesmo,fico feliz de ter tido o privilégio de conhecer e conversar com ele, que a mim tb ensinou muita coisa, um beijo
ResponderExcluirNesses dias de molho a gente fica sem concluir nada. Sò li um texto hoje atè o fim. E valeu por todos que poderia ter lido.
ResponderExcluirEm amizades "recentes" como a nossa falta as vezes a dimensao do "conhecer a familia". Falei com teu pai uma vez sò, por telefone, para combinar de ver um jogo da Copa de 2002 juntos em Roma. Nao deu, ele tava indo pra Torino. Eu na època era ainda nao tava muito por dentro de Italia e me faltou presença de espirito pra dizer "entao vou pra Torino tambem". Passou a chance. Fica mais uma saudade de tudo que eu nao vi. Beijo.
Gustavo
<3
ExcluirNossa, foi difícil segurar as lágrimas mesmo sem conhecer os personagens. Bem escrito e melancólico.
ResponderExcluirAbraços
Dia 30 é que se completam sete anos da ida do cara. Mas ele faz falta todo dia. Acho que pra sempre.
ResponderExcluirSim, faz falta sempre, todo dia, todo o dia.
ResponderExcluirBeijo, amor.
Adriana
Nessa madrugada lá se vão dois anos que o meu pai tb foi para outras aventuras... e eis que eu me deparo, por acaso(?) com o seu texto. Muito bonito e sincero...eu ainda não conseguiria fazer um sem me debulhar em lágrimas! O que eu já estou fazendo há algumas horas...a gente nunca consegue dar tchau direito, não é mesmo?
ResponderExcluir=) (tem acaso não... os deuses brincam de levar a gente pra esses lugares aí...). Que bom que vc gostou. Um grande abraço. Renata
ResponderExcluirRe, amor sincero como essa a gente reconhece de longe tamanha gratidão, sem culpas, sem arrependimentos...Haja coração (o meu muito mexido para variar depois de ler) Bjs
ResponderExcluirMi
Emocionou-me de verdade. Senti como seria se acontecesse agora comigo essa perda. Tanta coisa para ser feita ainda. Sempre há tempo. Ao mesmo tempo, que feliz fiquei em ver essa relação tão linda de amizade e respeito sincero entre pai e filha.
ResponderExcluirParabéns, Renatinha. Certamente o legado continua em sua simpatia e sorriso contagiante que tive o prazer de conhecer pessoalmente.
Beijos
Fiquei emocionada de verdade, pois recentemente falei com Fafa sobre a última vez que o vi, com Norinha e Jarbas e está tudo tão dentro deste texto lindo que vc escreveu. E saber que a mistura de carinho e aprendizado e respeito só poderia dar neta pessoa tão espontânea na transmissão de afeto e de valores, que só me resta ficar encantada com os ricos textos com que voc^nos brinda.
ResponderExcluirQue bom que você gostou, Carmem...! Tava conversando com uma amiga hoje, e contando como o aprendizado da conversa, do acolhimento ao outro, à opinião contrária foi importante pra mim. Aí lembrei de compartilhar o texto de novo. Beijo e obrigada pela visita! =)
ExcluirOi Querida Renata, passamos muito tempo sem nos ver, mas compartilhamos momentos importantes ainda bem crianças... li o seu texto e me emocionei ,como todos, claro... difícil as perdas, penso nas minhas futuras... não me lembro bem do seu pai, mas, os meus, falam dele de vez em quando, com muito carinho, vcs continuam presentes nas nossas vidas e isso é muito bom! Um beijo grande!
ResponderExcluirAna, só vi esta msg agora! Tomara q vc veja a resposta...
Excluirque legal os seus pais falarem dele. Era um cara desses que valem a viagem, viu. Beijo grande p vc.
Que bonito, Renata! Fico emocionada com o amor que os une a ele. Bjs
ResponderExcluiracho que você teria gostado de conhecê-lo, Lu. e vice-versa. beijos!
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